Sistema de compartilhamento de bicicletas é a nova onda nas administrações engajadas. Será que o gasto compensa?
No Natal de 1986, ganhei minha primeira bicicleta “de verdade”. Era uma super moderna Caloi Cruiser azul, sem marchas. Parecia uma BMX para quem cresceu, novidade em um mundo de Monaretas velhas e Barra-fortes sem graça. A pracinha do bairro, naquela manhã de Natal, era um verdadeiro desfile de bicicletas novas. Minha experiência prévia com o ciclismo durou pouco tempo. Uma Caloi Berlineta vermelhinha, alguns anos antes, o meu primeiro encontro com o compartilhamento de bicicletas. Deixei a querida ao lado do muro de casa e um ladrão a levou, para todo o sempre, sem deixar vestígios ou digitar CPF.
30 anos depois, o ciclismo tornou-se algo mais do que uma simples atividade física ou de lazer. Existe um aspecto inegável de militância em muitos grupos de pessoas que parecem confrontar o carro malvadão e poluidor, disputando espaço nas ruas e avenidas, com uniformes colados ao corpo e capacetes piscantes. Em 30 anos, foi perdida a capacidade humana de pedalar entre os carros, empinar a roda da frente, dar cavalinho de pau com a roda freiada, pular o barranco da padaria e sobreviver, usando nada mais que short Adidas, camiseta e chinelos. Uma geração que temia muito mais a mãe que descobrisse estas atividades do que o impiedoso areião do chão e as quedas, ficou para trás.
As bicicletas compartilhadas
Eis que surge então a tal bicicleta compartilhada. Um sistema que disponibiliza bicicletas para quem quiser ir do ponto A ao ponto B, sem precisar, digamos, comprar ou ganhar do pai a sua própria bicicleta! Chega de mandar bilhetinhos, manter bom comportamento ou notas azuis. Agora basta um CPF e pimba!
Quer dizer, não basta apenas um CPF. Pelo mundo todo, a onda das bicicletas compartilhadas, heroicas e combatentes do carro malvadão são compradas, instaladas em estações e mantidas, em geral, por dois “atores” bem distintos: empresas que trocam as calorias queimadas nas pedaladas do cidadão por exposição da marca na cestinha ou “saia” da roda traseira e prefeituras, que pegam dinheiro público, compram ou alugam a estrutura e cortam a fita.
Licitação
Em Nova Iorque, aquela cidadezinha americana menor que o Boqueirão, instalou um sistema em troca de publicidade nas estações ou bicicletas e até mesmo pela permissão dada a uma bandeira de cartão de crédito para que diga que é a “forma de pagamento preferencial”. Passo Fundo, a Capital da Literatura e do Planalto Médio, licitou uma empresa para que instale o sistema, ao custo previsto de 600 mil reais anuais, convertido, na prática, para cerca de 418 mil.
A empresa Mobhis Automação Urbana LTDA foi a vencedora. Disputou com “Samba Transportes Sustentáveis LTDA” e “M2 Soluções em Engenharia LTDA”. A chamada para o certame foi realizada em 22 de setembro de 2015, a licitação em 5 de novembro e a assinatura do contrato em 27 de novembro. Tudo no mesmo ano. Em 12 de maio de 2016, o sistema entrou em operação. Segundo a transparência no site da prefeitura, até hoje a empresa não recebeu pagamentos, dos R$ 383.350,00 devidos (11 meses). Existe uma previsão de pagamento anulada em dezembro de 2015 no valor de R$ 34.000,00.
Os usuários das bicicletas
Cerca de 5000 pessoas fizeram inscrição para desfrutar das bicicletas de Passo Fundo. Espalhadas principalmente pela Avenida Brasil, as estações parecem atender a um público. Todos movidos pela curiosidade e pelo lazer, dentro ou fora das ciclovias (que mereceriam outro texto). Em matéria de marketing para a administração pública, o sistema rendeu muito. Só se fala nas bicicletas. Pessoas fazem fotos, postam nas redes. Não vamos considerar aquele público que tem ligação direta com a prefeitura e vive falando bem do sistema. Acusam os críticos de “recalcados” e “invejosos”. Flertam com teorias da conspiração sobre os inúmeros casos de vandalismo logo nas primeiras horas de funcionamento. São bicicletas deixadas em matagais, pneus furados ou tentativas de furto direto na estação.
Falando em vandalismo, alguns jornais locais divulgaram uma feature do sistema que não consta de forma muito clara no site da empresa: o rastreamento. Segundo estes canais, toda bicicleta é equipada com GPS, permitindo a busca em caso de roubo. No site, existe menção a uma etiqueta RFID (sistema similar ao das etiquetas contra roubo nas lojas de roupas) que identifica a proximidade da bicicleta com a estação, esta sim ligada via rede ao controlador central. Quando indagamos o responsável técnico da Mobhis por contato telefônico, não foram dadas informações por questões de “segurança”. Perguntamos também se, existe um GPS. A empresa poderia fornecer um mapa plotado com as rotas combinadas de todas as bicicletas nos últimos dias. A resposta foi: “tem que ver com a prefeitura”. Fica a dúvida e um palpite: não deve existir realmente um sistema de GPS com retorno por 3G ou outro tipo de rede, em cada uma das 110 bicicletas. No máximo, estações “sentindo” a presença de cada uma delas, quando passam perto (poucos metros).
Muita água vai rolar e as bicicletas devem entrar no cotidiano do passo-fundense, até que não sejam mais vistas como novidade. Ainda teremos um inverno inteiro pela frente para analisar o uso e o perfil de cada participante. Se vale a pena? Para a administração, foi um lance magnífico. Para o pagador de impostos? Nem tanto. Empresas privadas poderiam muito bem bancar tudo, sem cobrar um centavo além das pedaladas para a divulgação da marca privada, não da pública. E o cidadão, que não quer estas duas opções. Ou pode procurar o supermercado ou o magazine ou a compra online. Capacete? Opcional.
DISCLAIMER
Nova Iorque é sim, maior que o Boqueirão. E quem quiser ler um resumo sobre o compartilhamento de bicicletas por lá pode conferir na Wikipedia, no site oficial do sistema ou aqui. Tudo em inglês.
Balneário Camboriú também tem sistemas de bicicletas, sem gastos para a prefeitura, segundo o G1.