Uma série de mudanças estão em curso na nossa sociedade. E cada vez mais estamos sendo influenciados por essas transformações.
Estamos em conflito permanente não só com a sociedade, como também com nós mesmos. A vontade, estimulada pelos desejos e necessidades ilimitados, está nos distanciando dos assuntos ligado à alma e à sua formação como indivíduo.
Falamos em “sociedade”, porém cada vez menos em “indivíduo”. Estão nos reduzindo a um elemento quantitativo, um mero acidente biológico evolutivo.
Precisamos de imunidade para estes efeitos, vinculando o homem a assuntos mais importantes, ligados a um exame de consciência acerca de sua vocação. Também desestimular o contato com os efeitos do consumismo e do mau uso da tecnologia no seu dia a dia.
As gerações estão cada vez mais próximas do mercado de trabalho, embora cada vez mais distante da própria vocação. Há um descompromisso total dos seres com suas funções sociais. Ninguém mais se dispõe a resolver o problema de mais ninguém¹.
O Brasil está perdendo as suas referências culturais, formando “cidadãos” capazes de destruir a continuidade cultural de uma geração para outra com inexplicável facilidade. Atualmente, os brasileiros não leem Machado de Assis, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Graciliano Ramos. O maior nome da filosofia brasileira, Mário Ferreira dos Santos, foi completamente ignorado pelas universidades, sendo um completo desconhecido inclusive para os profissionais do ramo².
Para a formação intelectual, é imprescindível que a pessoa se exponha a críticas, que troque ideias, que receba outras informações. O conhecimento é uma longa estrada sem fim. Agora, se não há fim, perguntam alguns, por que se dedicar a isso?
A formação intelectual é como o trabalho da empregada doméstica: limpa a casa num dia e no outro precisa voltar a limpar. Ou seja, seu trabalho, quando acaba, recomeça no dia seguinte. É preciso, portanto, estar sempre desenvolvendo novos temas e aprofundando os que já se conhece.
Por isso é de vital importância acompanhar o legado cultural de outros tempos. Para José Arruda:“A contribuição dos gregos para a humanidade abrange todos os setores da vida humana.“ As reflexões de Sócrates sobre a natureza e o homem e os monumentais sistemas filosóficos criados por Platão e Aristóteles tornaram o pensamento grego imortal. Pode-se dizer que os gregos foram os verdadeiros fundadores da Filosofia. O teatro grego chega até nossos dias, com suas tragédias ainda cheias de vida. Demóstenes e outros grandes oradores são apontados como mestres da oratória. O esplendor da arte grega ainda pode ser admirado nas ruínas do Parthenon e na Acrópole de Atenas³.
A função social do legado cultural é de grande importância, pois a experiência da vida humana necessita de constante aprimoramento, não só do ponto de vista pessoal, quando um ser humano é capaz de, diariamente, aprimorar as suas faculdades físicas e mentais, mas também da continuidade de um legado. A cultura é o progresso das atividades intelectuais.
Agora, como se transmite o legado cultural de uma geração para outra? Atualmente, a humanidade possui uma vasta gama de ferramentas que permitem catalogar os eventos, formata-los numa segura base de dados sem que isso se perca (tal como aconteceu com as civilizações mais antigas). Por exemplo, sabe-se que os textos que hoje temos de Aristóteles são apenas fragmentos de suas ideias. Muitos de seus trabalhos se perderam. Hoje, se Aristóteles estivesse vivo, não teria maiores dificuldades de guardar suas ideias, escrevendo, aprimorando, isso para que as gerações seguintes pudessem se valer de suas obras para o desenvolvimento de ainda outras.
Pode-se percebem que, se um ser humano quer aprimorar a sua experiência, terá que partir de algum conhecimento já existente, para que tenha, pelo menos, alguma base conceitual para que esse trabalho seja aprimorado:
A civilização não é apenas o desenvolvimento tecnológico que vemos na atualidade. A civilização é um ato de poder transformador, é levar o homem desde suas mais básicas e primitivas formas de conceber a vida até as mais elevadas dimensões da ética e da virtude, quer dizer, ao melhor de si mesmo, que o coloca em contato com o bom, o justo e o belo⁴.
Devemos com urgência resgatar parte do que foi perdido nos aspectos culturais nacionais, abraçando o que há de mais elevado com semelhante amor tal como as mães com seus filhos. A formação da próxima geração, portanto, será resultado do que esta faz no presente.
Notas
1- Corroborando com isso, cumpre observar que a palavra trabalho é originária do vocábulo latino tripaliu, que era um instrumento de tortura utilizado para punir pobres e escravos que não podiam pagar seus impostos. Criou-se um vínculo com uma ideia pejorativa acerca do ato de trabalhar, representando as atividades produtivas realizadas por camponeses, agricultores, serventes, artesão, ou seja, pelo conjunto dos trabalhadores em geral. Assim, o trabalho era o que distanciava a aristocracia – ou até mesmo os cidadãos com maior poder econômico – dos demais. A retomada do trabalho como sinônimo de desenvolvimento da atividade produtiva, capaz de agregar valor e dar a possibilidade de melhorar as condições de vida, foi sendo construída ao longo da Idade Média. NASCENTES, Antenor. Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa. Rio de Janeiro, 1955, p. 500.
2- Vale destacar, sob o aspecto da simbólica, o trabalho do filósofo brasileiro Mario Ferreira dos Santos, reconhecido como um dos mais completos sobre o tema: SANTOS, Mario Ferreira dos. Tratado de Simbólica. 2. Ed. 1959. Versão online disponível em: <http://portalconservador.com/livros/MFS-Tratado-de-Simbolica.pdf>. Acesso em 10/01/2015.Por fim, para Eric Voeglin: “O homem é […] naturalmente tradicionalista. Vive e se aperfeiçoa graças à educação que lhe é dada e ao acervo de bens acumulados pelos seus ancestrais. Sem herança, sem tradição, não há progresso, isto é, sem a entrega de um patrimônio de cultura de uma geração a outra.”VOEGLIN, Eric. A Nova Ciência Política. Tradução José Viegas Filho. 2. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 6.
“Leia livros de literatura. Leia aos montes… leia-os o máximo que você puder. Especialmente os romances. Neles você terá, além de um contato com a língua na sua forma mais emblemática, a possibilidade de se deparar com personagens fictícios que enfrentam dramas da vida próximos daqueles que os cientistas sociais enfrentam; próximo daqueles que os juristas enfrentam. Frustrações, paixões, um desfile de dilemas morais tudo que nos leva a sentirmos mais humanos, menos bestializados. Não é à toa que as grandes utopias humanistas queriam formar uma espécie de comunidade universal de leitores. Na literatura temos a representação maior do modo com as relações humanas se desdobram e produzem sentido no mundo prático. Basta relembrar a operacionalidade geométrica do Direito para percebermos que a realidade não sensibiliza os juristas; as ficções, sim. Com isso, seguimos confundindo as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos.” STRECK, Lenio Luiz. O protótipo do estudante de direito ideal e o “fator olheiras”. Publicado em 23/10/2014. <http://www.conjur.com.br/2014-out-23/senso-incomum-prototipo-estudante-direito-ideal-fator-olheiras> Consulta em 13/11/2014.
3- “Também a ciência alcançou grande desenvolvimento entre os gregos: a matemática de Euclides e os teoremas de Tales ou Arquimedes foram incorporados definitivamente ao patrimônio cultural da humanidade. O conhecimento do corpo humano recebeu um grande impulso com Hipócrates.“O regime democrático grego, que funcionou com perfeição em Atenas, serviu de modelo a todos os povos. Os gregos alimentaram também o ideal cívico, o amor à pátria, ao regime político e à família.“Os gregos legaram à humanidade também o ideal esportivo, que eles desenvolveram nos jogos pan-helênicos, com seus concursos, sobretudo nos jogos olímpicos.” ARRUDA, José Jobson de A. O legado cultural da Grécia. In: História Antiga e Medieval. 18. Ed. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 185.
4- OSUNA, Esmeralda. Cícero e o Impulso Civilizatório. In: CÍCERO, Marco Túlio. Acadêmicas. Edição Bilíngue. Introdução, tradução e notas: José R. Seabra. Belo Horizonte: Edições Nova Acrópole, 2012, p. 41.