Como o crime se alastra por vias culturais no Brasil

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A criminalidade que afeta o povo brasileiro tem raízes específicas. A insegurança se fortaleceu após décadas de trabalho cultural intenso, que perpassa as fronteiras do Brasil, as prisões e os círculos acadêmicos e artísticos, não se resumindo apenas a falta de investimentos dos governos na compra de equipamentos, viaturas e contratação de policiais. O resultado é conhecido pelo cidadão de bem, que fica trancafiado em casa, com medo de ser assaltado e de perder seus bens ou a própria vida.

No senso comum, parece fácil resolver o problema da criminalidade. Para alguns, bastaria haver mais policiais para que os bandidos desaparecessem. Outros insistem que desarmar o cidadão é o melhor caminho para a paz social – tese já refutada em artigos neste site (aqui e aqui). Obviamente, ações práticas são necessárias. É preciso mais agentes repressores ao crime nas ruas das nossas cidades e, sem dúvida, devolver ao indivíduo o direito à autodefesa seria benéfico. Mas a verdade é que o conflito nessa seara não se trava apenas com armas de fogo. Há muito a guerra cultural possui um dos lados na disputa melhor armado.

A cultura da idealização do bandido no Brasil pode ser encontrada em obras literárias, peças de teatro, músicas, filmes e programas de televisão. Quem não se lembra de alguma cena na TV em que, apesar de ser o chefe do tráfico ou assassino, o criminoso tem ares de um ser superior protetor dos seus? Ao tempo em que o policial não raro é retratado como corrupto ou incompetente? Sequer é necessário utilizar a imagem do policial: em comparação com o vilão, o cidadão de classe média acaba por ser ele próprio o culpado pelos males da sociedade.

Exemplo disso é a reportagem do jornal El País, datada de dezembro de 2016, que resume a história do traficante Nem da Rocinha, a fim de divulgar um evento literário no Rio de Janeiro. O texto jornalístico transforma a carreira de um criminoso num romance no qual todos poderiam ter um final feliz – caso não houvesse a interferência das leis e da polícia no enredo, é claro. Segundo a matéria, a dificuldade financeira “corrompeu” o trabalhador comum que buscou auxílio junto ao líder do tráfico da favela. Inserido no mundo do crime, Nem chegou ao posto mais alto da hierarquia e tornou o morro um lugar cool, com baixos índices de violência, bem frequentado, onde a corrupção ficava por conta dos policiais que promoviam atos como sequestros de animais de estimação para cobrar resgate. Esse é o típico retrato de um veículo de comunicação a serviço da guerra cultural, tentando desfazer a imagem do criminoso ao colocar em seu lugar uma aura de bondade que não combina com um chefe do tráfico.

Outro exemplo é o livro “Quatrocentos contra um”, de William da Silva Lima, um dos líderes do Comando Vermelho. Basta ler a orelha para encontrar materializada a idealização dos bandidos. “O Brasil sem dúvida possui muitos casos de gente politizada, inteligente e articulada que passou pela prisão ou está nela. William da Silva Lima está preso em Bangu III. Escreveu a história de seu trânsito pelos presídios e também de suas fugas, e o fez com uma lucidez moral e política poucas vezes vista. Há vigor em suas palavras, vale a pena reeditar: convidamos para o prefácio o escritor-criminólogo Percival de Souza e nos damos o prazer de recolocar à disposição dos leitores um testemunho histórico interessante e pungente. Tudo perfeito”.

 

Pode-se citar ainda um funk em que a polícia é rotulada como “raça do caralho”. Não é concebível utilizar tais termos para fazer referência a qualquer outro grupo social. Entretanto, taxar policiais dessa forma é perfeitamente aceitável no entendimento da ala esquerda da intelectualidade brasileira, para quem a explícita incitação a violência nada mais é senão uma simples manifestação artística.

As novelas são força importante na batalha da subversão de valores. Tome-se como exemplo o programa I Love Paraisópolis, em que o jovem e bem apresentável Caio Castro foi retratado como Grego, um bandido poderoso. O inconsciente das pessoas que acompanharam o folhetim gravou a relação entre um homem que comete crimes e suas ações, justificadas pela conquista de poder e beleza.

Da mesma forma o seriado que relatou a vida de Pablo Escobar apresentou o traficante como um benfeitor, que auxiliava os seus. Ocorre que nenhuma boa ação justifica as más atitudes. O fato de ter ajudado materialmente muitas pessoas não acaba com o mal provocado pelo tráfico, mortes e roubos. No entanto, a narrativa utilizada na produção induz o espectador a relevar os atos maus para justificar os bons. Esquecem-se que nenhuma ação má pode ser justificada, ainda que o objetivo seja um bom resultado.

Tudo isso é produzido propositalmente a fim de conduzir o imaginário popular a manter esses conceitos como sendo a realidade, apesar de estarem somente na ficção. Reforça-se, assim, uma luta de classes onde o bandido torna-se o cobrador legitimado de uma reparação pela injustiça social cometida pelos integrantes da outra classe – policiais, empresários, classe média e alta, ou por qualquer cidadão cumpridor de seus deveres.

A história demonstra que a conexão entre banditismo e miséria não é regra; afirmar isso seria chamar toda pessoa pobre de criminosa. Há centenas de causas para o crime, mas uma delas destaca-se na atual realidade brasileira: o enfraquecimento (quando não a ausência) de regras morais. A subversão dos valores, com a consequente exaltação de bandidos através da cultura, serve como catalisador para pessoas com caráter fraco ingressarem no mundo do crime. Quantos jovens veem a possibilidade de obter poder, respeito e riqueza através de ações criminosas? E quando aceitam esse nefasto convite, esses mesmos jovens bebem de pelo menos uma entre duas fontes: de sua família desestruturada ou dos modelos difundidos através das artes cênicas e musicais da atualidade.

Para vencer esse combate é preciso mais do que somente um grande efetivo policial. Se faz necessário o fim da relativização de valores morais, destinando para a lata de lixo a cumplicidade intelectual para com a ação criminosa de fato.

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