O objetivo que se faz aqui presente é o de apresentar alguns dos pontos do “Ratio Studiorum”, documento que apontava regras essenciais de organização e plano de estudos da Companhia de Jesus. Tratava-se, portanto, do método pedagógico empregado pelos jesuítas na formação dos seus sacerdotes e dos seus estudantes, conforme apresentados abaixo.
Formação de eminentes professores de letras: O domínio sobre o conteúdo dos grandes autores, o conhecimento das letras clássicas, era o mínimo que poderia se esperar daqueles que lecionavam na Companhia de Jesus. Atualmente, o diploma basta por si só.
Arthur Schopenhauer alertou sobre problemas enfrentados no ensino ainda no século XIX, para o qual “os professores ensinam para ganhar dinheiro e não se esforçam pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão de possuí-la. E os alunos não aprendem para ganhar conhecimento e se instruir, mas para poder tagarelar e para ganhar ares de importantes.”[1]
Proibição de livros inconvenientes: Uma boa obra pode ser imprescindível para a formação das almas que cultuam um modelo de vida disciplinado. O zelo pela seleção de boas obras, que não se façam prejudiciais à honestidade e aos bons costumes, responsáveis por uma formação virtuosa, são fundamentais para uma vida de estudos.
Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei, apontou na sua obra “Caminho”, no ponto 339: “Livros. Não os compres sem te aconselhares com pessoas cristãs, doutas e prudentes. – Poderias comprar uma coisa inútil ou prejudicial. Quantas vezes julgam levar debaixo do braço um livro… e levam um montão de lixo!”[2]
Numa das passagens, aconselha-se que: “O assunto das tragédias e comédias, que convém sejam raras e só em língua latina, deve ser sagrado e piedoso; nada deve haver nos entreatos que não seja em latim e conveniente; personagens e hábitos femininos são proibidos.”
Domínio de línguas essenciais: Hebreu, grego e latim eram línguas essenciais para os escolásticos, sobretudo o latim. Ao professor das Sagradas Escrituras, o sentido genuíno e literal confirmava a fé e o fundamento dos bons costumes. A interpretação fidedigna é a busca pelo sentido original, pois as palavras dependem, muitas vezes, de um dado momento histórico para sua melhor compreensão. As palavras de cada língua, sobretudo quando analisado o sentido etimológico, podem aproxima-la da sua essência, embora nem sempre garanta exatidão.
Recitação de discursos e poemas: Os exercícios de retórica eram habituais. Não só condicionavam à preparação de um bom orador, como também desenvolvia um conjunto de habilidade acessórias, tais como o conhecimento de outras línguas, eloquência, capacidade de persuadir, dentre outras muitas habilidades tão importantes para todo sacerdote que desejasse conquistar almas:
Quando se explica uma oração ou poesia, exponha-se em primeiro lugar o sentido, se escuro, e critiquem-se as diferentes interpretações. Em segundo lugar, esquadrinhe-se toda a arte da composição: a invenção, divisão e exposição; com que habilidade se insinua o orador, com que propriedade se exprime, ou em que lugares vai buscar argumentos para persuadir, ornar ou comover; como frequentemente num só trecho aplica muitas regras; de que modo reveste as razões que convencem com figuras de pensamento e, por sua vez, às figuras de pensamentos associa as figuras de palavras. Em terceiro lugar citem-se alguns trechos semelhantes pelo conteúdo ou pela forma ou pela forma e aleguem-se, outros oradores ou poetas que se serviram da mesma, para provar ou narrar cousa parecida. Em quarto lugar, se for o caso, confirme-se o pensamento com a autoridade de homens de saber. No quinto lugar, procure-se na história, na mitologia e em todos os domínios do conheci mento o que possa contribuir para esclarecer a passagem. Por último ponderem-se as palavras, a sua propriedade, elegância, riqueza e harmonia. Os pontos acima foram indicados não para que o Professor os percorra sempre todos, senão para que, dentre eles, escolha os que caírem mais a talho.
Da composição dos versos e do estudo do grego os estudantes não poderiam ser dispensados, nem mesmo das declamações habituais que aconteciam nos domínios da Companhia.
Exercícios de memória: Os grandes nomes da oratória grega, como Cícero e Quintiliano, deixaram expressamente documentado a necessidade de uma boa memória para a formação do orador. Para tal, não só exercícios diários eram recomendados, bem como a recitação de cor de trechos da bíblia, de poemas e dos melhores discursos catalogados, a fim de unir o exercício da memória com o da declamação. Sabia-se, não de agora, que a imitação é uma etapa imprescindível até que se forme um estilo próprio, não sendo possível o desenvolvimento de um bom profissional que não tenha se apoiado sobre os ombros dos gigantes.
Composição: A composição de um trabalho, seja ele escrito ou não, deveria ser preparado com os olhos voltados para os grandes nomes das letras clássicas, quanto possível dirigido para a imitação de Cícero e segundo o modelo de uma narração, persuasão, congratulação, admoestação ou coisa semelhante. O domínio sobre as letras sempre foi dado como imprescindível na formação de um intelectual.
Ao contrário do que costuma-se pregar, a Companhia não discriminava estudantes por questões financeiras. Muito do que já se falou sobre a elitização do ensino pode estar equivocado. Na Bula Veritas Ipsa, de Paulo III, dada em Roma, no ano de 1537[3], prescreve que: “A mesma Verdade, que nem pode enganar, nem ser enganada, quando mandava os Pregadores de sua Fé a exercitar este ofício, sabemos que disse: Ide, e ensinai a todas as gentes. A todas disse, indiferentemente, porque todas são capazes de receber a doutrina de nossa Fé.” Ou seja, o progresso do conhecimento deveria levar em consideração as particularidades de cada um, sobretudo aqueles que zelavam e cultuavam o conhecimento.
Embora destacados apenas alguns pontos do Ratio Studiorum, fica claro que o preparo dos estudantes sob os cuidados da Companhia de Jesus estava muito além do que se espera de um aluno destes tempos. Regras rígidas sobre disciplina também ajudavam nessa etapa de formação, o que nem passaria pela cabeça do mais rigoroso dos professores hoje – embora nem mesmo se quisesse poderia fazê-lo. Um bom modelo de educação começa com o olhar sobre os bons exemplos, sobretudo de tempos nos quais o saber era verdadeiramente cultivado.
Notas:
[1] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre : L&PM, 2009. p. 19.
[2] ESCRIVÁ, Josemaria. Caminho. Tradução de Alípio Maia de Castro. 9. Ed. São Paulo: Quadrante, 1999. p. 117-118.
[3] O documento pode ser consultado no seguinte endereço:
<http://www.montfort.org.br/bra/documentos/decretos/veritas_ipsa/>