A Estação da Gare está no meio de um debate sobre uso do espaço público que envolve dinheiro, preservação e relação de empresas privadas com o governo.
A Estação da Gare foi, nos últimos, anos o “lar” para a Feira do Produtor, um posto da Brigada Militar e a sede da antiga Cooperativa Agroleite. Com a reforma do Parque, a feira passou a operar do outro lado da rua, em novas instalações, e as demais ocupações foram abandonando o prédio, tombado pelo patrimônio público.
A Estação e seu entorno ganharam uma reforma em 2016, como obra complementar do grande projeto do Parque. Foram reformadas calçadas, iluminação e realizada nova pintura. Hoje a estrutura é cedida para manifestações artísticas eventuais, como exposições de pinturas, objetos e pequenas feiras do livro.
Um edital para concessão onerosa de todo o espaço da Estação gerou um debate acalorado entre grupos que se beneficiam direta ou indiretamente da cedência para uso cultural e a Prefeitura. A concorrência pública (número 07/2017) receberá as propostas das empresas interessadas em explorar o local no dia 26 de setembro, às 14h. Poderão concorrer empresas interessadas em explorar o local para empreendimentos gastronômicos com “serviços à la carte dentro dos padrões nacionais e internacionais de serviços e produtos”, na área de bar, pub ou cervejaria. O negócio deverá ser preferencialmente noturno.
A Concessão Onerosa
O bem público (a Estação da Gare) deverá passar por reforma e adequação custeada pelo interessado, seguindo regras específicas, e gastando no mínimo R$ 280.000,00 (duzentos e oitenta mil reais). Tudo deverá ficar pronto em até 8 meses, com possibilidade de prorrogação deste prazo em 30 dias. O contrato tem duração de 10 anos (prorrogáveis por mais 10), com 5 anos de carência para começar a pagar um aluguel de R$4.500,00 pela concessão. Resumindo: O interessado monta o seu negócio gastando cerca de R$280 mil para adequar o prédio às especificações, opera pagando apenas os impostos normais e só depois começa a pagar o aluguel. Na primeira versão do edital, seria este valor lá no futuro. A segunda versão (e vigente) das especificações declara que o aluguel será reajustado a partir da data de assinatura do contrato pelo IGP-M (algo em torno de R$5.700,00 a partir do ano de 2022).
As particularidades do edital
A proposta da Prefeitura de Passo Fundo para a exploração do local é elitista. De forma explícita, limita as atividades e impõe restrições para estabelecimentos mais “populares”. No documento “Anexo 1 – Termo de Referência”, o item 3.2 diz que não serão permitidas no projeto churrascaria, xisaria, padaria, fastfood e serviços na modalidade “Buffet por KG”. O item 10.33 exige a contratação de um profissional chefe de cozinha.
Lendo o documento, nota-se a preocupação em caracterizar o empreendimento. A riqueza de detalhes, sugerindo até mesmo a instalação de aquecedores de ar para espaços abertos, guarda-corpo para a plataforma e o intuito de destinar o espaço “ao encontro das pessoas em um happy hour como também em um jantar descontraído entre amigos ou familiares, dando ao cliente a possibilidade de escolha do que melhor se adapte ao seu gosto” chega a confundir o leitor entre a linguagem institucional de uma prefeitura que cede um espaço público e um investidor que oferece uma proposta prévia de uso, já com o negócio em mente.
A reserva cultural
Segundo o item 3.8 do mesmo anexo, o empreendedor deverá reservar aproximadamente 70 m2 para um “espaço cultural”, mantendo exposição fixa de resgate histórico do local, através de material vinculado ao surgimento da estação férrea e também galeria de arte itinerante de artistas locais.
Planta baixa e fachada da estação férrea.
A área total do prédio é de cerca de 664 m2, um retângulo comprido com o lado menor possuindo 7 metros. São 4 blocos de alvenaria ou madeira. A reserva cultural deverá ocupar cerca de ⅓ de um dos blocos de madeira, se for contínua. A exploração comercial ficaria com os blocos restantes, além das plataformas externas, abaixo da cobertura.
O embate ideológico
Entre as reclamações do time contrário ao edital, está a perda do espaço para fins culturais. Este ponto é altamente discutível, primeiramente por não existir atividade artística que seja naturalmente presa à estação, em segundo por ser vasta a oferta de espaços públicos ou privados na cidade capazes de receber atividades do porte daquelas exercidas pelos grupos que já passaram pela estação e em terceiro (e até mais importante), do outro lado da rua, dentro do novo Parque da Gare, está em fase de acabamento o Espaço Prisma, identificado dentro dos projetos da prefeitura como “Biblioteca da Gare”, caracterizado como espaço cultural, capaz de receber diversas atividades. De dinheiro público, apenas neste prédio, o gasto já passou de 1,2 milhão de reais.
Espaço Prisma, uma das obras do Parque da Gare.
Outro ponto polêmico levantado pela “turma da cultura” – e que salta aos olhos neste edital – é o baixíssimo valor cobrado pelo aluguel. Um ponto comercial com mais de 600 m2, em importante área da cidade, por míseros R$4500,00. Uma rápida passada pelos sites das principais imobiliárias de Passo Fundo mostra imóveis comerciais ao longo das avenidas da cidade por valores na faixa de R$15.000,00 a R$30.000,00. É um negócio de pai para filho, e com carência. Ainda que o imóvel tenha suas particularidades, é comum o aluguel para fins comerciais e com longo prazo com grandes investimentos para adequação na iniciativa privada. O ente público aqui está concorrendo de forma desigual com os privados na oferta de imóveis para um investidor.
A chegada da estrada de ferro em 1898, a construção da estação, com sua posterior ligação da linha com Marcelino Ramos em 1910, transformou radicalmente a vida daqueles passo-fundenses do início do século XX. Aliás, toda a história das grandes obras ferroviárias brasileiras dessa época é riquíssima, ignorada pela maioria da população que não sabe muito da vida dos baianos irmãos Rebouças, do nosso “nome de rua” Teixeira Soares e de Marcelino Ramos.
Voltando para o futuro, nossa frágil estação de madeira, ferro e alvenaria é por si só uma peça de museu, com valor inestimável. Uma edificação que já sediou por décadas o comércio de alimentos, a fritada de pastéis, os vandalismos de outros carnavais e a ação do tempo.
Nossa comunidade tem duas opções: aceitar a exploração comercial do prédio e do seu entorno, ou oferecer algo de valor imaterial através da união de diferentes correntes de pensamento, juntando forças para transformar o local em um ponto de convergência para o resgate histórico das ferrovias brasileiras e de nossa participação nesta linha. Ao exemplo de Curitiba, fazer o moderno abraçar o velho, como no Shopping Estação.
Museu Ferroviário no Shopping Estação, em Curitiba.
A capital paranaense conseguiu combinar preservação e modernidade, ao fazer um shopping center de grande porte abraçar uma estação de trem. Na estação, dioramas em tamanho natural revelam cenas de pessoas comprando passagens, junto com um riquíssimo levantamento fotográfico em meio a peças da época.
Outras alternativas para exploração comercial da região poderiam contemplar preservação e uso comercial. Talvez alguma edificação fazendo frente para a rua General Canabarro que relembre as feiras de antigamente, uma solução para a ligação do centro ao parque em uma espécie de High Line nova-iorquino ou uma cobertura que dê o merecido abrigo para a estação.
É importante destacar ainda os atores deste embate. Em perspectiva, grupos da arte e da burocracia municipal que deveriam compartilhar as mesmas idiossincrasias socialistas ou comunistas, mas divergentes em interesses e situados em estágios diferentes do poder.
Na prática, o desfecho desse embate terá poucas possibilidades até o dia 26. Seria a chance da cidade reunir todos os grupos de interesse e fazer mudanças. Mas o trem da história vai passar, entre um gole e outro de cerveja.
PS. Os dados sobre os editais e obras aqui mencionados foram retirados do sistema de transparência da Prefeitura de Passo Fundo. Para mais informações, recomendamos o contato com a Secretaria de Planejamento: (54) 3316-7220.