Nem sempre o Davi de Michelangelo esteve situado dentro da Academia de Belas Artes de Florença, como aparece nas imagens habituais. Da sua conclusão até séculos mais tarde, a estátua localizava-se na praça em frente ao Palazzo della Signoria, sede do governo de Florença. Não poderia haver lugar mais simbólico. A presença do herói bíblico ali transmitia uma mensagem contundente e desafiadora: que os poderosos ocupantes do palácio jamais cedessem à tentação tirânica, pois David – o arquétipo de homem simples, livre e temente a Deus – estava preparado para enfrentar a arrogância dos Golias locais.
Não foi diferente o cenário que Porto Alegre viveu nas últimas semanas, por ocasião da campanha contra o Queermuseu do Santander Cultural. Quando apanhei minha velha câmera a pilhas e gravei o primeiro vídeo-denúncia viralizado contra a exposição criminosa, não passava de um cristão sozinho enfrentando o poder conjunto do Estado, do lobby gayzista internacional, da elite artística, da imprensa e de um banco bilionário. Assim como na estória bíblica, um observador isento diria não haver a menor possibilidade de êxito, tamanha a disparidade de forças. Contudo, o banco perdeu – e segue perdendo – milhares de clientes, os responsáveis pelos crimes foram expostos e três dias e duas rodas de oração depois o Queer Museu era fechado para ali nunca mais reabrir. Ao menos até a data presente, Davi impôs-se sobre Golias.
A que se deve o relativo sucesso da campanha? Um poderoso método de pressão política pode estar sendo arraigado no Brasil: o boicote. Quer pela superficialidade das nossas crenças, quer pela carnavalização da nossa vida pública, quer pela escassez de consciência política – o fato é que, até poucos anos atrás, não se imaginava que a população pudesse aderir em massa a uma campanha descentralizada e espontânea (“horizontal”, diriam os esquerdistas) contra uma instituição que ultrajasse sua fé e seus valores. Quem o fizesse seria provavelmente taxado de fanático, lunático, excêntrico. Já assinalava Gilberto Amado: “Para o brasileiro, a primeira virtude é não ter iniciativa, não desgostar ninguém, não ter inimigos. O que prezamos na conduta pública é, acima de tudo, a mediocridade serena e polida.” A mensagem que uma educação perversa nos inculca a todos desde a infância é simples e cristalina: tenha sua fé e seus valores, se quiser, mas não os leve a sério. Acima de tudo, não os leve tão a sério que esteja disposto a sacrificar-se por eles.
Pois foi esse atavismo secular da nossa cultura, misto de nominalismo vulgar e preguiça, que a campanha contra o Queer Museu provou ter cura. Vamos alcançando assim o padrão de normalidade dos Estados Unidos, onde a cultura do boicote já é o pão nosso de cada dia, e empresas como CNN e Starbucks sofrem prejuízos milionários a cada vez que incorrem em suas “lacradas”. Que a empresa boicotada, no episódio em questão, fosse um banco internacional, acrescenta ao caso uma dose fina de ironia, pois confirma que o “grande capital” contra o qual vociferam as Lucianas Genros e os Jean Wyllis é, sim, contrário aos interesses do povo – e o é na exata medida em que apadrinha a militância revolucionária. Tudo indica que os esquerdistas terão de suar um pouco mais a partir de agora para se desvincularem das elites financeiras e rentistas a que tão obviamente pertencem.
Contudo, a polêmica levantada não serviu para desmascarar somente a esquerda. Serviu para desmascarar também muitos liberais e libertários, deixando claro quais, dentre eles, têm compromisso com a verdade, e quais com a agenda globalista. O MBL, por exemplo, apesar de ter aderido tardiamente à campanha, merece ser elogiado pelo seu posicionamento razoável. O mesmo não se pode afirmar de outras figuras torpes do meio liberal que, a pretexto de defenderem, quer uma liberdade de expressão contraditória em si mesma, quer suas taras individuais, optaram por fazer vista grossa ao vilipêndio religioso e à erotização infantil promovido pelo banco. Curiosamente, em suas análises, muitos deles relegaram o papel da Lei Rouanet a segundo ou terceiro plano, como se o ódio ao Estado que os caracteriza só encontrasse limites num ponto: a exaltação do bundalelê. Por outro lado, será que algum desses zelosos guardiões da liberdade deixaria de tomar as providências cabíveis caso um gozador decidisse usar as imagens de suas digníssimas mães para uma intervenção artística de vanguarda? Acho que não.
A guerra cultural inaugurada pelo caso Santander está só começando. Apesar do precedente espetacular, eventos semelhantes contendo sacrilégios e pedofilia explícita estão ocorrendo em todo o país, como a infame performance de Wagner Schwarz no Museu de Arte Moderna em São Paulo. O lobby da pedofilia saiu da toca na imprensa. O dinheiro público segue recheando os bolsos dos charlatães da classe artística via patrocínio dos bancos, apesar dos protestos gerais. E há sinais de que a agenda cultural da esquerda recrudescerá à medida que for encontrando oposição, a exemplo do que já acontece no resto do mundo. Por tudo isso, temos de estar preparados. Temos de manter o olhar confiante e concentrado na direção do inimigo como o Davi de Michelangelo, carregando nossos estilingues com três pedras: a oração, o estudo e a ação destemida. Assim abateremos o Golias vermelho.