Atribui-se a John Adams a descrição da República como “um governo de leis, não de homens”. James Madison afirmou que “em um governo republicano, o poder legislativo naturalmente predomina”[1]. Para os Pais Fundadores, o Congresso era a mais importante entre as três Casas do Poder. Já o Judiciário, pensava Alexander Hamilton, seria politicamente inofensivo, o menos poderoso entre os três poderes. Hamilton dizia que o Executivo possui as armas, o Legislativo a carteira, mas o Judiciário “não possui força nem vontade próprias, somente o juízo”[2]. A Suprema Corte, na visão dos Pais, operaria estritamente dentro dos parâmetros da Constituição, sendo estes delineados pelos representantes do Povo no Congresso.
A República dos EUA foi concebida como um sistema de governo federalista, com difusão de poderes e mecanismos de freios e contrapesos, regidos por uma Constituição Federal propositalmente pequena que defere autonomia legislativa aos Estados. Madison afirmou que “o governo federal possui poderes legislativos em uma esfera definida e limitada, além da qual [o governo] não pode estender sua jurisdição”[3]. Da mesma forma, a 10ª Emenda da Constituição determina que todos os poderes não delegados ao governo federal são reservados aos Estados[4].
Entretanto, os Federalistas pareciam não prever que, ao longo de seus 219 anos, a Suprema Corte assumiria maior relevância do que a idealizada por eles. De fato, nos últimos 50 anos, 9 juízes no Supremo, não eleitos, têm causado mais impacto na sociedade americana do que 535 representantes eleitos no Congresso.
Atual Suprema Corte dos EUA (Julho 2018). Fileira dianteira (da esquerda para a direita): Ruth Ginsburg, Anthony Kennedy, John Roberts (Chefe do Supremo), Clarence Thomas e Stephen Breyer. Fileira de trás (da esquerda para a direita): Elena Kagan, Samuel A. Alito, Sonia Sotomayor e Neil Gorsuch.
Originalistas x Darwinistas Judiciais
É surreal imaginar que os legisladores da Constituição Americana, há 231 anos atrás, elencariam o aborto e o casamento gay na Carta de Direitos, ao lado da liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade religiosa. Para o bem ou para o mal, é fato que a Constituição Federal nada diz sobre estes temas. Entretanto, Roe vs. Wade e Obergefell vs. Hodges (que, respectivamente, legalizaram o aborto e o casamento gay em todo o território nacional) são dois dos acórdãos do Supremo que, na prática, criaram legislação federal para questões sociais outrora legisladas no âmbito estatal.
Para entendermos como se deu este processo de elevação do Poder Judiciário, é preciso penetrar, brevemente, no complexo microcosmo das divergências no âmbito interpretativo do direito anglo-saxão. Originalistas (ou textualistas) entendem que a Constituição deve ser interpretada de forma literal e objetiva, de acordo às intenções originais do legislador. Não-originalistas (ou “pragmatistas judiciais”) entendem que a Constituição é “um documento vivo”[5] que evolui e se adapta a novas circunstâncias. A teoria “darwinista” da interpretação jurídica determina que a Lei deve ser interpretada à luz das mudanças políticas, culturais e sociais ocorridas ao longo dos anos, sem a necessidade de ser modificada.
Desde a década de 1930, um número crescente de juízes americanos tem adotado uma interpretação mais progressista e menos textual da Constituição. A flexibilidade na aplicação das leis, embasada em critérios subjetivos de interpretação, concede aos magistrados o poder de legislar – prerrogativa exclusiva do Congresso. Independentemente do resultado produzido, benéfico ou maléfico, tal processo abre um perigoso precedente em que leis, outrora rejeitadas nas urnas ou no Legislativo, sejam instauradas através do Judiciário.
O que estava em jogo em 2016
A Suprema Corte dos EUA é composta por nove juízes – atualmente cinco conservadores e quatro progressistas. Diante do papel político assumido pelas cortes, republicanos e democratas viram na última eleição presidencial uma oportunidade única: alterar o equilíbrio de poder no Judiciário pelas próximas três décadas. O vencedor nomearia um substituto para o juiz conservador Antonin Scalia (falecido em fevereiro de 2016), além de possivelmente outras duas ou três substituições a juízes em idade já avançada – entre eles o conservador Anthony Kennedy (82) e os progressistas Ruth Ginsburg (85) e Stephen Breyer (80).
Ao tomar posse da Presidência da República, um dos primeiros atos de Donald Trump foi indicar o originalista Neil Gorsuch para a cadeira de Scalia. No final do último mês de junho, Anthony Kennedy anunciou sua aposentaria, viabilizando, assim, a segunda nomeação de Trump à Suprema Corte. O indicado foi o juiz, também originalista, Brett Kavanaugh.
Para entendermos o real impacto de uma segunda indicação de Trump ao Supremo Tribunal nos dias atuais, basta lembrar que Ronald Reagan nomeou três juízes à Suprema Corte em oito anos de governo (dois mandatos), George H. Bush nomeou dois juízes em quatro anos, Bill Clinton nomeou dois juízes em oito anos, George W. Bush nomeou dois juízes em oito anos e Obama nomeou dois juízes em oito anos. Trump, que já indicou dois juízes ao Supremo em apenas 18 meses de governo, ainda conta com mais de meio mandato pela frente (2.5 anos), além de um possível segundo mandato (4 anos), caso seja reeleito.
O impacto da aposentadoria de Kennedy
Em 31 anos como magistrado do Supremo, Anthony Kennedy alinhou-se aos seus companheiros conservadores em vários casos ouvidos pela Corte. Recentemente, o juiz votou com a maioria que decidiu que um confeiteiro cristão, do Colorado, não deveria ser obrigado a preparar um bolo de casamento a um casal gay. Igualmente, Kennedy votou a favor do Decreto Presidencial que proíbe a entrada de cidadãos de cinco países muçulmanos nos EUA, e deu voto decisivo para o fim das contribuições sindicais obrigatórias. Entretanto, este octogenário, indicado por Reagan em 1987, ganhou o apreço dos democratas ao favorecer pautas progressistas como o casamento gay, o aborto e a ação afirmativa.
Anthony Kennedy (82), indicado por Ronald Reagan em 1987.
Por ser o detentor do “swing vote”, a aposentadoria de Kennedy representa uma grande perda para democratas e progressistas em geral. A surpresa do anúncio, feito há poucos meses de uma eleição legislativa, causou alvoroço na esquerda americana. Os democratas sonhavam em reconquistar a maioria do Senado em novembro para, entre outras coisas, obstruir a confirmação de um segundo juiz “ultra-conservador”. Já para os conservadores, que possuem maioria no Senado, o anúncio não poderia ter sido feito em melhor hora.
Trapalhada nuclear
Nos EUA, todos os candidatos ao Judiciário – em todas as instâncias federais –, são indicados pelo Presidente da República e, posteriormente, confirmados pelo Senado. Até recentemente, a confirmação de uma indicação dependia de pelo menos 60 votos entre os 100 senadores – um sistema que visava proporcionar uma maior cooperação entre os dois partidos. Em 2013, chefiados pelo então líder da Maioria, Harry Reed (Nevada), os democratas optaram pela chamada “opção nuclear”, um procedimento parlamentar que altera o regimento do Senado e elimina o requisito da super-maioria para a confirmação de nomeações. Reed foi alertado pelo então líder da minoria, Mitch McConnell, que os democratas se arrependeriam desta decisão em um futuro próximo. No ano seguinte (2014), os democratas perderiam a maioria no Senado e agora, de acordo às atuais regras, a confirmação de Kavanaugh só depende de uma maioria simples (50 votos +1). A profecia de McConnell nunca esteve tão próxima de se realizar.
Quem é Brett Kavanaugh
Nascido e criado em Washington, DC, Brett Michael Kavanaugh é bem relacionado politicamente. Formado em Direito pela Universidade de Yale, Kavanaugh trabalhou como Chefe de Gabinete de George W. Bush. Posteriormente, foi indicado pelo ex-presidente ao importante Tribunal Federal de Apelações em Washington, cujas opiniões são frequentemente lidas pela Suprema Corte e servem como base para muitas decisões lá feitas. Sua confirmação ao Tribunal de Apelações ficou suspensa no Senado por 3 longos anos, por obstrução dos senadores democratas. O motivo: Kavanaugh participou das investigações que levaram ao impeachment do então presidente Bill Clinton na Casa dos Representantes.
O Juiz Brett Kavanaugh, com sua família, na cerimônia de sua indicação à Suprema Corte por Donald Trump (Julho de 2018).
Kavanaugh é um juiz jovem, atualmente com 53 anos de idade – o que, em tese, garantirá sua presença no Supremo pelas próximas três décadas. Em 2011, Kavanaugh votou contra o banimento de rifles semiautomáticos em Washington, baseando-se nas proteções constitucionais da Segunda Emenda.[6] Em 2015, favoreceu a liberdade religiosa, votando contra a cobertura obrigatória de contraceptivos nos seguros médicos fornecidos por instituições católicas.[7] Em 2017, votou contra a soltura de uma estrangeira menor de idade, em situação ilegal no país, para ela que pudesse interromper sua gravidez em uma clínica de aborto.[8] Em diferentes ocasiões, Kavanaugh afirmou a Separação de Poderes, criticando o modo como a Administração Obama excedeu o escopo de autoridade do Executivo, na prática legislando por meio de agências reguladores como a EPA (Agência de Proteção Ambiental)[9] e o FCC (Comissão Federal de Comunicações).[10]
Até mesmo desafetos republicanos de Donald Trump, como George W. Bush e John McCain, elogiaram a escolha do Presidente. O fato de Kavanaugh ser aceito pelo establishment republicano irá tornar sua confirmação relativamente fácil, o que não equivale a dizer que o juiz não terá seus desafios. A partir de agora, todas as suas decisões serão postas sob a lupa – não somente as tomadas no exercício de seu magistrado, mas também suas decisões pessoais. Não obstante, a despeito do jogo político no Distrito de Columbia, se a conduta pessoal de Kavanaugh for tão impecável quanto seu currículo, pouco poderá ser feito para impedir sua confirmação.
Conclusão
Os Pais Fundadores ancoraram a República americana na estabilidade de suas Leis. O ativismo judicial – que permite ao magistrado interpretar e aplicar a Lei de acordo à sua própria cosmovisão – seria uma prática totalmente inaceitável aos Fundadores. A maior evidência disso é o complexo processo de modificação constitucional por eles arquitetado: ao longo dois séculos, mais de 10 mil modificações (ou emendas) já foram propostas ao texto constitucional e somente 27 delas foram aprovadas. Consequentemente, a Constituição dos EUA não sofreu alterações significantes desde o final da Guerra Civil (1865).
Em 12 anos de magistrado, mais de 300 decisões judiciais e diversos artigos legais, Brett Kavanaugh estabeleceu o respeitado histórico textualista que viabilizou sua indicação à Alta Corte. Apesar de todo o balburdio político, iniciado antes mesmo de o substituto de Kennedy ser anunciado, os democratas nada deveriam temer com sua indicação. Podemos citar, como exemplo, uma de suas decisões mais controversas, criticada ferozmente pelos republicanos em 2011: no litígio que questionava a constitucionalidade da “responsabilidade individual” – um dos componentes do sistema de seguro de saúde federal, conhecido como Obamacare – Kavanaugh votou a favor de sua constitucionalidade por entender que se tratava de um simples imposto e, portanto, legal.[11] Sua interpretação foi posteriormente usada pelo chefe do Supremo, o juiz John Roberts, que, baseado neste princípio, deu seu voto de minerva pela constitucionalidade do Obamacare[12] – principal legado do ex-presidente democrata, Barack Obama.
Por conta desta decisão, Kavanaugh ainda é criticado por alguns republicanos que alegam que o juiz não é “suficientemente conservador” para a Suprema Corte. A despeito das diferentes opiniões legais acerca de seu voto, o episódio demonstra claramente que Kavanaugh não é agente político e não toma decisões de viés ideológico. A segurança institucional do Jurídico depende não da perfeição de seus juízes – seres humanos como todos nós –, mas de sua integridade na forma do compromisso exclusivo com a Lei. E, a julgar pelo que demonstrou até o momento, podemos dizer que Brett Kavanaugh é o sonho dos Pais Fundadores para a Suprema Corte dos EUA.
[3] James Madison em seu discurso “On the Expediency of Adopting the Federal Constitution”, junho de 1788.
[4] Desde que não sejam proibidos pela Constituição Federal.
[5] Conceito desenvolvido pelo cientista político Howard Lee McBain em seu livro “The Living Constitution” (1927) – conforme Larry Solum, Professor de Direito da Universidade de Georgetown, em seu artigo “Legal Theory Lexicon: Living Constitutionalism”, 14 de maio de 2017.
[11] O mandato individual obriga todo cidadão americano a comprar seguro de saúde ou pagar uma multa. O debate, em Seven-Sky vs. Holder, era se a “responsabilidade individual” era uma penalidade, no intuito de coagir o indivíduo a comprar um produto (o que grupos conservadores viam como uma prática inconstitucional) ou se era um simples imposto (a interpretação que prevaleceu). Ironicamente, a Administração Obama havia defendido sua controversa legislação perante a opinião pública alegando, justamente, que a lei não se tratava de um novo imposto.
[12]National Federation of Independent Business vs. Sebelius.