Quantas vezes você já ouviu falar que metade do orçamento público é destinada ao pagamento de juros da dívida? Diversos grupos de interesse e pré-candidatos à Presidência da República, como Ciro Gomes, sustentam essa tese, afirmando que o Brasil tem recursos de sobra pra atender aos anseios da sociedade brasileira. Logo, não há necessidade de repensar a estrutura da despesa pública, como, por exemplo, a lógica envolvendo a contratação/remuneração de servidores e, principalmente, a Seguridade Social, incluindo os benefícios da Previdência.
Não pode haver mentira maior do que essa, e a lógica envolvendo sua desmistificação é simples. Entenda aqui.
Exemplo didático: como é possível pagar uma dívida sem gerar um gasto?
Suponha que os gastos de um determinado cidadão superem recorrentemente seu salário mensal. Esse agente resolve tomar emprestado R$ 1.000 a uma taxa de juros de 30% ao ano, ou 2,21% ao mês. Ao final de um ano, conforme acordado, deverá pagar não só os R$ 1.000, como também R$ 300 em juros, totalizando R$ 1.300. Vamos imaginar ainda que o cidadão em questão não seja previdente. Portanto, ao final do período, estará sem qualquer tipo de recurso para honrar sua obrigação, inclusive para quitar parte da dívida.
A solução envolve tomar R$ 1.300 emprestados de outra fonte para cobrir o débito anterior. Não há qualquer tipo de desembolso nessa operação. Caso consiga se financiar novamente a 30% ao ano, o montante total devido ao fim do segundo ano será de R$ 1.300 mais R$ 390 em juros, ou seja, R$ 1.690.
Teoricamente, esse processo pode seguir de maneira indefinida, contanto que alguém esteja disposto a emprestar volumes cada vez maiores de dinheiro a cada ciclo. Chegará um momento, todavia, em que a dívida é tão grande que não haverá nenhum ente disposto a efetuar novos empréstimos, por conta das frágeis condições financeiras do requerente.
Esse paralelo é esclarecedor para compreender a chamada “rolagem” da dívida do governo: a União gasta mais do que arrecada, e angaria empréstimos junto ao mercado para fechar as contas. A lacuna oriunda da insuficiência de receita com impostos para cobrir os gastos totais (incluindo os juros das dívidas anteriores) é coberta pelo meio de refinanciamentos e/ou novas emissões de dívida. Conforme a lógica anteriormente descrita, esse mecanismo não acarreta em nenhuma despesa concreta por parte do governo.
E o que justifica a fala de Ciro Gomes?
Os dados referentes à execução do orçamento da União, do ano de 2017, mostram que as rubricas “amortização/refinanciamento da dívida” e “juros e encargos da dívida” somaram R$ 986,1 bilhões, de um total de R$ 2,48 trilhões em dispêndios: 39,7% do total, conforme a tabela abaixo. As estatísticas oficiais podem ser consultadas aqui.
Despesas previstas e pagas do governo federal – 2017 – Em R$ bilhões
Fonte: SIGA Brasil / Senado Federal.
A desonestidade de Ciro Gomes envolve basicamente dois aspectos: o primeiro diz respeito à utilização das “despesas orçadas” para fins de análise, e não das chamadas “despesas pagas”. Se fizermos a mesma conta usando aquele, a soma das duas rubricas destacadas na tabela acima totaliza 50,4%. É daqui que vem a famigerada frase de efeito do pré-candidato.
Porém, todos aqueles que realizam algum planejamento financeiro, seja de uma família ou de uma empresa, sabem que pode haver uma grande distância entre os valores estimados inicialmente e aquilo que, de fato, ocorreu efetivamente. Foi exatamente o caso dos dispêndios da União em 2017. Vale lembrar que o ano passado ficou marcado pela forte queda da Taxa SELIC, que passou de 13,75% ao ano no início do ano para 7,0% em dezembro.
Por último, mas não menos importante: é necessário apontar com clareza a fonte dos recursos para a “Amortização / refinanciamento da dívida” e “Juros e encargos da dívida”. Quando o governo incorre em déficit primário (gastos maiores do que a receita, excetuando o pagamento de juros da dívida), como é o caso desde 2014, não há um único centavo proveniente dos pagadores de impostos alocado para o serviço da dívida: absolutamente tudo é consumido pelo funcionamento da máquina pública, e ainda há escassez.
Gerar poupança para o pagamento de juros da dívida é bom ou ruim?
O resultado primário é uma medida da eficiência do governo no que tange à gestão das contas públicas. O Brasil conseguiu sustentar superávits consideráveis entre 2003 e 2013, usando essa folga no caixa para abater parte da dívida. Nesse período, nosso endividamento bruto como proporção do PIB, pelo critério adotado pelo governo brasileiro, caiu de 76,1% para 59,6%. A responsabilidade fiscal trouxe diversos benefícios à economia brasileira, como a abertura de espaço para a redução estruturada da taxa de juros, beneficiando o consumo das famílias, os investimentos produtivos e da própria redução do pagamento de juros da dívida, conforme o gráfico abaixo. Essa ambiência favoreceu o crescimento do emprego, da renda e dos salários.
Resultado primário do Governo Federal e pagamento de juros da dívida – Em R$ bilhões deflacionados pelo IPCA até maio de 2018 – Acumulado em 12 meses
Fonte: Tesouro Nacional.
A partir de meados de 2014, no entanto, a queda dos preços das commodities no âmbito externo, mas, principalmente, a má-alocação dos gastos federais em benefícios creditícios/subsídios que não geraram resultados, a redução da confiança e a crise política no front interno levaram à deterioração das finanças públicas. O quadro também foi agravado pela necessidade de aumento da taxa de juros em plena recessão econômica, uma vez que diversos preços foram mantidos artificialmente baixos entre 2011 e 2014: conta de luz e taxa de câmbio, para citar alguns exemplos.
A piora das contas do governo está diretamente atrelada à forte elevação do endividamento dos últimos anos: de 59,6% no fim de 2013 para 86,0% do PIB. A atual dificuldade em aprovar medidas de contenção de gastos no Legislativo aponta para a continuidade dessa tendência. Há, no entanto, um limite claro para a sua sequência. Caso não sejam adotadas medidas concretas de austeridade pelo lado da despesa, colheremos alguma das três soluções – ou qualquer combinação entre as mesmas – a seguir: elevação dos impostos, inflação ou maior endividamento. Nesse último caso, seremos obrigados a conviver com juros cada vez mais elevados para atrairmos capitais do exterior. Numa situação limite, se não houver poupadores dispostos a financiar essa dívida, o calote seria deflagrado, trazendo recessão e níveis de desemprego ainda mais altos.
Conclusão: o que devemos fazer para deixarmos de pagar tantos juros?
A retórica de Ciro Gomes e de grupos de interesse faz parecer que existe uma soluções fáceis para problemas difíceis. Diagnósticos errados – por incapacidade técnica ou mau-caratismo – são o primeiro passo para a destruição completa de uma nação, legando milhões de pessoas à pobreza e à interrupção dos seus sonhos.
Não há como equacionar a crise fiscal brasileira sem a adoção de medidas de restrição aos gastos. Entre elas estão a revisão dos subsídios/desonerações fiscais, reforma da Previdência, a revisão da lógica envolvendo a remuneração/contratação dos servidores públicos, entre outras medidas. Não se trata também de colocar na Presidência um gestor eficiente: sua margem de manobra está limitada aos 10% do orçamento para o qual existe flexibilidade de escolha. O restante depende de mudanças legais e constitucionais, que precisam ser aprovadas pelo Congresso. As eleições de 2018 representam uma encruzilhada para o Brasil, de modo que os cargos de Deputados e Senadores assumem papel de extrema relevância nesse pleito.
Em suma: quanto pior é o desequilíbrio entre receita e despesa do governo, maiores são os juros, cobertos não pelo contribuinte, ou seja, com gastos do governo, mas pelo refinanciamento / emissão de novas dívidas.