Uma década após a inauguração, a Praça Armando Sbeghen se encontra abandonada pela prefeitura e associados. Dinheiro público e reputações jogadas no lixo.
Nem os moradores da fictícia cidade de Asa Branca, município imaginado por Dias Gomes para a telenovela Roque Santeiro, poderiam sonhar com o final melancólico reservado para três grandes símbolos que enaltecem nosso título de Capital Nacional da Literatura: Árvore das Letras, túnel da literatura e quiosque da Praça Armando Sbeghen (a poucos metros da prefeitura) estão sujos, depredados e abandonados.
Encravada entre a Avenida Brasil, o Rio Passo Fundo e a Rua Ângelo Preto, a praça ganhou uma reforma e a instalação do monumento “Árvore das Letras” em 2008. Pouco a pouco, o local foi recebendo os demais equipamentos sempre com pompas, autoridades e cobertura da imprensa. Toda esta estrutura era vendida como grande potencializadora da relação da população com os livros, ajudando a justificar o pesado uso de dinheiro público nas empreitadas. Em valores da época, o convênio com o Governo Federal financiou a obra com R$ 682 mil e mais uma contrapartida da prefeitura no valor de R$ 209 mil. O valor atualizado até julho deste ano pelo INCC – Índice Nacional do Custo da Construção fica em R$ 1,8 milhão.
A sinergia das “palavras bonitas”
Canais estatais não economizam ao reportar as glórias literárias da Cidade e seus beneméritos. No informativo da Assembleia Legislativa de março de 2008, o destaque era para o então deputado Luciano Azevedo. No texto “Luciano participa da inauguração do Marco da Literatura de Passo Fundo” podemos ler:
O deputado Luciano Azevedo (PPS) participou na sexta-feira da inauguração do Marco da Capital Nacional da Literatura, na Praça Armando Sbeghen, em Passo Fundo. A obra consolida o título da cidade de Capital Nacional da Literatura e cria novo espaço de cultura e lazer para a comunidade, abrigando locais para visitação e leitura.
Luciano, que em novembro de 2007, teve seu primeiro projeto transformado em lei, tornando Passo Fundo a Capital Estadual da Literatura, lembrou que a cidade é a melhor para se morar e que o Marco demonstra o orgulho dos passo-fundenses de viverem na Capital Nacional da Literatura. Ele ressaltou que a inauguração representa um momento fundamental para a cidade. “Passo Fundo comemora a literatura sempre presente em sua vida e agora o trabalho deve ser para que as ações permaneçam e se fortaleçam na criação de outros espaços”, disse.
Mais adiante, justificativas:
O Marco da Capital Nacional da Literatura abriga a Árvore das Letras, cujo principal objetivo é consolidar o título obtido por Passo Fundo em janeiro de 2006, como Capital Nacional da Literatura e ainda o Monumento aos Tropeiros, que se relaciona à passagem deles com o gado em direção a São Paulo, pelo lugar mais fundo do rio que deu origem ao nome Passo Fundo. Além dos dois monumentos, a Praça ainda abriga um quiosque multimídia com livros, revistas, jornais e acesso à Internet, além de dois túneis em metal onde estão textos de autores locais, regionais e nacionais, que serão substituídos a cada 15 dias. Passo Fundo vai contar também com quatro praças semelhantes que representarão diversos tipos de literatura.
Já o site da Prefeitura é farto em citações ao local que já abrigou diversos eventos, especialmente nos primeiros anos após a inauguração. Em “Governo Municipal Incentiva Ações Literárias” de novembro de 2009, um conjunto de ações culturais é listado e dá uma noção sobre o espírito da época no setor. Recentemente, o mesmo site divulgou a renovação de contratos do “Adote o Verde”, programa que incentiva a adoção de praças e canteiros da cidade por parte de empresários e instituições interessadas em assumir as tarefas do poder público e manter tudo limpo e organizado. A Universidade de Passo Fundo é “madrinha” do Largo da Literatura e renovou os votos em dezembro de 2017.
Se Asa Branca viveu (e sobreviveu) do mito da morte de Roque Santeiro, nossa fama de apreço diferenciado pelas letras rende até hoje muito destaque para personalidades da política. Coladas em quase todas as edificações da praça estão placas metálicas com dezenas de nomes de responsáveis por verbas, políticos eleitos da época e instituições que emprestaram prestígio ou boa vontade para os monumentos.
Detalhes do quiosque na tarde de domingo, 18/11/2018: livros amontoados podem ser vistos através das janelas, acumulando sujeira e umidade. Banheiros deteriorados e instalação elétrica deficiente. O entorno da edificação é coberto de lixo, fezes e pichações. O odor é insuportável.
Árvore das Letras: suja e corroída pelo tempo, a estrutura de ferro precisa de reparos até mesmo nas instalações elétricas precárias. Em destaque, uma das diversas placas com nomes dos beneméritos.
O movimento que que invadiu as avenidas e praças de Passo Fundo, com intervenções arquitetônicas na última década, com o propósito de reforçar o título literário da Cidade, forçou a mão. Acompanhado da ideia da criação de coisas com simples canetadas (leis criadas para dizer que Passo Fundo é a capital da literatura e tenho dito), convenceu a população de que não há nada de errado em dizer que espaços que estão a poucos metros de avenidas barulhentas e poluídas são propícios à leitura, ou que pesquisas de revistas indicando altos índices de leitura de livros por habitante/ano em Passo Fundo foram realizadas com métodos aceitáveis.
Viúva Porcina (a que sempre foi sem nunca ter sido) inaugura estátua de Roque Santeiro na pracinha de Asa Branca. A cidade sabia cultuar os seus mitos. O vídeo pode ser visto no Youtube.
A realidade – esta força que teima em derrotar quem a ignora – que tarda, mas não falha: o que foi forçado, hoje parece servir para forças maiores do entorno. No Largo, mendigos, prostituição e fezes em meio a ruínas. Nas praças e canteiros da cidade, tubos gigantes de plástico e ferro viram instrumentos de percussão e abrigo para atividades duvidosas. Mas se a Árvore das Letras secou, a torneira da dinheiro público continua aberta, sempre esperando por um bom mito para eleger novos beneméritos.
Saiba mais
DENOMINA DE “MARCO DA CAPITAL NACIONAL DA LITERATURA”, O COMPLEXO ARTÍSTICO-ARQUITETÔNICO, EDIFICADO SOBRE A PRAÇA ARMANDO SBEGHEM, ÀS MARGENS DO RIO PASSO FUNDO; ATRIBUI COMPETÊNCIAS E DISPÕE SOBRE A PERMISSÃO DE USO (Decreto municipal 41/2008).