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A última aula

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É 24 de janeiro de 2020. Faz frio em Londres. De Paddington pego o trem para Kemble e, de lá, um táxi até Malmesbury. Faz frio também em Malmesbury, até mais do que em Londres. O dia é cinza, nublado. “Malmesbury já deu ao mundo o filósofo maldito”, eu penso, “agora enterra o filósofo bendito”.

Uma névoa envolve a Abadia de Malmesbury. “Um templo havia aqui já no século VII quando Santo Adelmo começou a catequizar os saxões do oeste”, diz o pastor. “O prédio atual é de 1180. É um dos poucos que remanesceram da Dissolução dos Monastérios”.

Na entrada encontro Sam. Ele se recorda de mim. “Sempre volto àquele livro”, diz ele – uma coletânea de artigos de George Orwell que lhe dei de presente. Sam foi a primeira pessoa que eu conheci, em carne e osso, que estudou em Eton. Assim como Eric Arthur Blair.

Sento-me na frente, a direita do altar. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Olho para o outro lado a procura de conhecidos – vejo o Presidente da Câmara dos Comuns, Lindsay Hoyle. Muitas pessoas em pé, ao fundo, perto das paredes. “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. Mais ao fundo vejo Raymond Tallis. “Alguém deveria traduzir o livro dele urgente”, eu penso.

Robert “Bob” Grant sobe ao altar:

I leant upon a coppice gate

      When frost was spectre-grey,

And Winter’s dregs made desolate

      The weakening eye of day.

“Preciso ler Thomas Hardy”. Olho para o outro lado novamente. Vejo Douglas Murray, não muito ao longe, chorando copiosamente. Dias antes ele havia escrito: “Não há ninguém cuja mente eu sentirei mais falta, e ninguém que eu ainda tenha tanto para perguntar”. Mais tarde, na recepção, agradeci-lhe por ter limpado o nome do filósofo antes de sua morte. “Você pode imaginar que trágico seria aquele escritorzinho cretino enterrando uma carreira brilhante apenas alguns meses antes da sua morte?”. Ele balançava a cabeça abaixada em reflexão.

Ainda na Abadia, a letra do hino: “e tu gentil e cara morte / esperando para silenciar nosso último suspiro / levas para casa o filho de Deus / que Cristo, nosso Senhor, o caminho preparou”. Na minha frente, Michael Gove de olhos fechados cantando em alta voz. “Se há algo de admirável na Igreja Anglicana”, eu penso, “é essa infinidade de canções sacras maravilhosas”. Em canto uníssono, todos seguindo a letra com os olhos. A melodia parece familiar a todos.

Samuel Hughes sobe ao púlpito:

We shall not cease from exploration

And the end of all our exploring

Will be to arrive where we started

And know the place for the first time

“Certamente isso resume bem o homem” – eu pensei. Olho para cima, para os detalhes quase milenares daquele prédio. Vejo uma rachadura na parede, abaixo do trifório na ala norte. Um novo hino se inicia. Começa o cortejo. Seis homens – não sei quem são – levam o caixão pelo centro da nave.

No lado de fora encontro colegas da minha turma do mestrado. Peter Murray: “estou no meu último ano do PhD e ele estava me orientando”. “Qual o tema?”, pergunto. “Caça às raposas”. Quão conveniente. Certa vez convenci Sophie a me convidar para um dia de caça. No fim das contas não pude ir. Que oportunidade perdida.

A recepção é na prefeitura, não muito longe dali. Certamente o local é pequeno para tanta gente. Encontro Ralph Weir e duas moças dos Estados Unidos. “Estudamos com ele no Institute for the Psychological Sciences em Arlington” disseram elas. Logo eu lembro das apostilas de Filosofia Antropológica que ele me passou – foram produzidas para esse curso. Mais de 50 livros publicados, mas esse não foi. Quantos mais haveria? “Qual é o estado das universidades norte americanas?”, eu pergunto. “Terrível”, diz uma delas, “mas lá era uma universidade católica, afastada do establishment esquerdista, então ele se sentia à vontade”.

Alguém pergunta se minha filha é cidadã britânica. Não, ainda que nascida no Reino Unido, não é de pai ou mãe britânicos. “Isso mudou em 1975 durante o governo trabalhista”, diz meu colega Keith Miles. “Foram os trabalhistas?”, eu pergunto. “É claro: esse é o partido mais fascista da Europa”.

Ao longe vejo Alexander “Sandy” Stoddart. “Todo brasileiro deveria conhecer esse cara”. Lembrei-me da primeira vez em que o conheci: “Michelangelo é o escultor mais charlatão da história”. “Como assim?”, indaguei eu perplexo, já ébrio – ele não menos. “É puro marketing” – com aquele sotaque escocês que torna a coisa toda ainda mais atraente – “até hoje escuto pessoas de alta cultura repetirem aquela bobagem do ‘parla’. É puro marketing”. Verdade. “Como arquiteto, maravilhoso. Como escultor, medíocre”. “E Bernini” pergunto. “Esse sim”. Aquela era a terceira vez que eu via Sandy na minha vida – a primeira em que não ficamos bêbados juntos.

Minha filha corre pelo salão. “Eu posso ver quem está no comando”, me diz um senhor. Rimos. “De onde você o conhecia?” eu pergunto. “Sou da República Checa…” e eu logo interrompo “o senhor o conheceu no underground?!?”. “Eu já era formado em física, com uma carreira brilhante a frente… Como eu me neguei a curvar a cabeça pra Juventude do partido, fui enviado para varrer estação e limpar trilhos de trem. Depois da queda do regime, virei político, fui ministro”. “Como era criar uma família nessa situação?” pergunto depois de ele dizer que tinha quatro filhos. “Havia uma rede de solidariedade entre os dissidentes. Sempre nos apoiamos uns aos outros”. Agradeço pelos serviços prestados a humanidade. “Ele voou para o nosso país para nos libertar a alma. Agora eu venho aqui para pedir que Deus acolha a sua”. Nos despedimos e ele me dá um cartão. Leio: Pavel Bratinka.

E assim foi durante todo o dia. Sorrisos, memórias e lágrimas. E lá também vi Simon Blackburn, Alicja Gescinska, Anthony O’Hear, Lord Sumption, Viktor Orbán, Katharine Birbalsingh, Ed Husain. Tantas e tantas pessoas com as quais aprender – infelizmente tão distantes da realidade da minha terra. Lá estavam todos, reunidos sob teto milenar, sobre terra sagrada, utilizando-se de rituais ancestrais, transmitidos por séculos e mais séculos, de geração em geração – conservados por pessoas grandes como aquelas que ali estavam. Conhecimento ininterrupto sucessivamente acumulado. Tradição.

Suas últimas palavras escritas: “Ao se aproximar da morte começamos a conhecer o que a vida significa, e o que ela significa é gratidão”.

Grato somos nós a Roger Scruton.

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