Parceria do Governo RS com agência da ONU quer enfrentar a AIDS no Estado, mas pode estar colocando a raposa para cuidar do galinheiro
O governo gaúcho lançou um programa de cooperação com a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – para lidar com o problema da AIDS no segmento jovem da população no Estado. O nome é pomposo: Projeto Tecnologias Sociais Inovadoras de Educação e Saúde para a Prevenção de IST/AIDS em jovens no Rio Grande do Sul. Na base, consultoria para prefeituras e secretarias no tema sexualidade.
O lançamento da parceria foi realizado em cerimônia no Palácio Piratini no dia 10 de fevereiro. Rapidamente, o arranjo foi duramente criticado nas redes sociais por segmentos que suspeitam que o conteúdo gerado pela UNESCO possa ser de alguma forma um indutor da ideologia de gênero em nossos jovens.
Uma das críticas veio rapidamente do blog do jornalista Políbio Braga, no dia do anúncio oficial. O texto “Governo do RS contrata Unesco para defender ideologia de gênero nas escolas públicas do Estado” atacou o projeto e alegou ter dados da secretaria da Saúde que demonstram que o problema não está nas escolas, mas na permissividade social, com incidência geométrica nas regiões de maior criminalidade do Estado. Mais tarde, a postagem seria replicada pelo site RS Agora e transformada em postagem de facebook no formato de imagem com centenas de compartilhamentos de diversas origens e versões.
Imagem com texto que rodou no Facebook, com diversos autores e compartilhamentos (a ferramenta procura do site entrega várias postagens com os termos “Eduardo Leite” e “Gênero”).
Nesta semana, o Governo do Estado celebrou um importante convênio com a UNESCO, buscando implementar uma sólida política de prevenção à AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis. Levantou-se uma polêmica quanto ao eventual risco de que esse programa seja utilizado como vetor para introduzir a ideologia de gênero em nosso sistema educacional. Não é isso, porém, o que prevê o documento.
Uma leitura atenta do protocolo firmado com a UNESCO é o suficiente para ver que se trata de um documento técnico, que prevê uma série de ações coordenadas entre as áreas da saúde e da educação, nenhuma delas impondo a ideologia de gênero em nosso Estado. Trata-se, isso sim, de atacar com método e seriedade um problema grave de saúde pública do RS: o nosso Estado tem uma taxa de detecção de HIV de 27,2 pessoas para cada 100 mil habitantes, contra uma média nacional de 17,8.
Lamentamos que temas relacionados à saúde pública sejam tratados de forma irresponsável, e, diante disso, a bancada do PSDB na Assembleia Legislativa reafirma seu compromisso com a defesa da família, conforme reconhecem o Art. 226, §5°, da Constituição Federal e o Art. XVI da Declaração dos Direitos Humanos da ONU. É sob essa ótica que se deve ler o termo “gênero”, caso se insista em utiliza-lo: ele se refere ao homem ou à mulher; diferentes, mas dotados de igual dignidade.
Porto Alegre, 11 de fevereiro de 2020.
Deputado Estadual Mateus Wesp Líder da Bancada do PSDB na Assembleia Legislativa
Deputado Estadual Pedro Pereira Vice-líder da Bancada do PSDB na Assembleia Legislativa
Deputado Estadual Luiz Henrique Viana
Deputada Estadual Zilá Breitenbach
A nota do PSDB (que também é o partido do governador) coloca panos quentes na inquietação dos críticos e ainda dá um carteiraço intelectual, dizendo que a verdade estaria em uma leitura atenta ao documento do protocolo firmado com a UNESCO. Em nenhum momento o texto dá links para o documento do acordo e ainda diz que o assunto está sendo tratado de forma irresponsável por quem reclama. A nota oficial é um exemplo de defesa a qualquer custo das atividades do governo, matando o bom senso.
O deputado Mateus Wesp foi além
O deputado de Passo Fundo também gravou um vídeo em defesa do governo e do acordo com a UNESCO, ampliando indevidamente a questão. Na peça – publicada em seu perfil do facebook com requintes gráficos – gasta o primeiro minuto apresentando o projeto e dando números sobre a AIDS no Rio Grande do Sul, para posteriormente atacar ferozmente os críticos.
Destaque do vídeo produzido pelo deputado Mateus Wesp.
Mateus cita Drauzio Varella para dizer que a burrice é ousada, no caso das pessoas que teimam contra a ciência, e que a patrulha ideológica que antes era exercida pela esquerda agora se movimenta no sentido da “extrema-direita”, dos radicais que berram “Perigo Comunista”, taxando qualquer diálogo ou manifestação do PSDB como de esquerda ou de socialistas, “como se fossemos o PT de Terno”, reclama o deputado.
“A patrulha ideológica se levantou novamente esta semana para atacar o PSDB e este programa do Governo do Estado com a UNESCO mentindo descaradamente que estaríamos introduzindo ideologia de gênero nas escolas”.
O vídeo tem quase 9 minutos de duração e você pode assistir neste link.
Quando vereador em Passo Fundo, o hoje deputado Mateus Wesp era um firme combatente contra a ideologia de gênero nas escolas, com grande participação nos debates sobre o Plano Municipal de Educação e calorosos pronunciamentos na tribuna. Hoje, para defender o governador Eduardo Leite, usa frases de Drauzio Varella e chama os críticos de burros.
A ironia da coisa é que o médico da TV tem verdadeiro horror ao termo “ideologia de gênero”. Em um dos seus vídeos no Youtube, dedicou duras palavras – vejam só – aos políticos que lidam com o tema:
“Quem é heterossexual, é. Homossexual, é. E acabou. É dessa forma que as coisas acontecem. Aí o que fazem alguns políticos? Eles pensam assim: bom, eu… a sociedade, a população não conhece, não tem esses dados, não têm formação científica para entender esta explicação que eu acabei de dar. Então o que eu vou fazer? Vou dizer assim: eu sou defensor da família brasileira. Eu não quero que falem da homossexualidade porque o seu filho poderá virar homossexual. Isso é uma gente mal-intencionada. Eles são malandros… eles querem fazer de um jeito que pareça que dessa forma eles estão defendendo a família brasileira. Só que eles esquecem o seguinte: que dessa forma eles estão alimentando preconceito contra os homossexuais.”.
Não vamos aqui discutir a qualidade das ideias defendidas pelo doutor Drauzio no vídeo, mas fica evidente que o deputado Wesp precisa escolher melhor os seus frasistas, para não cair no ridículo.
Não é loucura questionar o programa de cooperação entre a UNESCO e o Governo RS
Nós usamos a Lei de Acesso à Informação para solicitar uma cópia do documento assinado entre as partes no evento de lançamento do programa. O Governo respondeu dentro do prazo legal com pdf contendo informações parciais, 10 páginas que são parte de um documento maior (o pdf inicia na página 29) dentro da seção “L. Contexto Legal”.
Objetivos e resultados esperados.
As 3 partes que assinam o documento são Arita Bergmann (Secretária de Saúde do RS) pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul – SES/RS (responsável pela execução das ações decorrentes do programa), o Embaixador Ruy Carlos Pereira da Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores (acompanhamento da execução) e Marlova Jovchelovitch Noleto pela própria UNESCO, também executora.
O “Contexto Legal” enviado pelo governo gaúcho apenas descreve as partes e objetivos, resultados esperados e responsabilidades genéricas, além da operacionalização financeira. Não recebemos qualquer material que mostre o que será ensinado em sala de aula, seus autores e metodologias. Talvez seja um dado reservado aos deputados da bancada do PSDB, altamente seguros sobre as tecnologias inovadoras da UNESCO.
A UNESCO e seus métodos
Se o documento enviado pelo Portal da Transparência do RS para a Lócus não conta tudo, a própria agência dá dicas. No livreto de 148 páginas “Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade – Uma abordagem baseada em evidências”, publicado pela UNESCO e já na segunda edição (2019), são regradas as abordagens para o assunto sexualidade, no desenvolvimento de currículos nas autoridades nacionais.
O manual da UNESCO para educação em sexualidade. Baixe aqui.
Diz a contracapa:
“As Orientações Técnicas Internacionais de Educação em Sexualidade da ONU foram publicadas pela primeira vez em 2009 como uma abordagem fundamentada por evidências para escolas, professores e educadores em saúde. Reconhecendo as mudanças dinâmicas ocorridas no campo da educação em sexualidade desde então, um grupo ampliado de organizações coeditoras da ONU fez a revisão e a atualização dos conteúdos para responder de forma apropriada às necessidades de jovens estudantes, bem como proporcionar apoio a sistemas e profissionais de educação que atuam para atender a essas necessidades.
“As Orientações Técnicas Internacionais de Educação em Sexualidade (edição revisada) fornecem orientação técnica sólida sobre as características de programas eficazes de educação integral em sexualidade (EIS); um conjunto recomendado de tópicos e objetivos de aprendizagem que devem ser abordados pela educação em sexualidade; e recomendações para o planejamento, a implementação e o monitoramento de programas eficazes de EIS.
“Esta edição revisada das Orientações reafirma a posição da educação em sexualidade dentro de uma matriz de direitos humanos e igualdade de gênero, e promove a aprendizagem estruturada sobre sexo e relacionamentos de maneira positiva, afirmativa e centrada nos melhores interesses dos jovens. Baseia-se em uma revisão das evidências e das lições aprendidas mais recentes a respeito da implementação de programas de EIS no mundo. As Orientações revisadas refletem a contribuição da educação em sexualidade para a consecução de vários Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em especial o Objetivo 3 sobre a boa saúde e bem-estar para todas as pessoas, o Objetivo 4 sobre a educação de qualidade para todas as pessoas, e o Objetivo 5 sobre o alcance da igualdade de gênero.”
Pontos de destaque
O livro aborda gênero de forma ampla em diversos momentos (a palavra aparece 229 vezes na obra). No glossário, gênero é definido como atributos e a oportunidades sociais associados ao fato de ser masculino ou feminino e aos relacionamentos entre mulheres e homens e entre meninas e meninos, bem como aos relacionamentos entre mulheres e aos relacionamentos entre homens. Tais atributos, oportunidades e relacionamentos são construídos socialmente e são aprendidos por meio de processos de socialização.
Há também a definição para identidade de gênero: a experiência interna e individual profunda do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos e outros).
Em Inconformidade de gênero, define: se refere a pessoas que não estão em conformidade com qualquer uma das definições binárias de sexo (masculino ou feminino), e também àquelas pessoas cuja expressão de gênero pode diferir das normas padronizadas de gênero. Em alguns casos, os indivíduos são considerados pela sociedade por ter essa inconformidade em função de sua expressão de gênero. No entanto, esses indivíduos podem não se perceber sua condição de ter inconformidade de gênero. A expressão e a inconformidade de gênero têm clara relação com percepções individuais e sociais de masculinidade e feminilidade.
As orientações da UNESCO defendem o aborto
O aborto (51 menções) é defendido como objetivo das políticas da agência em vários tópicos, pedindo a garantia de “direitos reprodutivos”, queda de barreiras como “consentimentos e autorizações” e, literalmente, liberação de leis restritivas sobre o aborto (página 127). Paralelamente, orientações também pedem que o aborto não seja promovido como método de planejamento familiar e que outros serviços sejam oferecidos. Pelo menos 4 especialistas conselheiros das políticas da UNESCO são ou foram da Planned Parenthood, entidade abortista americana, além de diversos trabalhos “PP” serem listados como estudos referenciados.
Conclusão
Por trás do esforço (justificável) para combater a AIDS no Rio Grande do Sul através da parceria com a UNESCO, existe um arcabouço teórico comprometido com diversas ideologias e uma agenda explícita, gestada na ONU e entidades parceiras. Apesar de usar dinheiro público federal (R$ 4,4 milhões em 4 anos com verbas do Ministério da Saúde) muitas ações – dentro das diretrizes apontadas no guia da UNESCO, não no contrato – vão contra os ditames e estilo do governo Bolsonaro nas áreas da saúde e educação. Qualquer crítica é justa, perto deste cenário defendido com unhas e dentes pelo PSDB do Rio Grande do Sul.