A Lócus Online convidou o médico Dr. Guilherme Krahl, cirurgião cardiovascular de Passo Fundo, para escrever sobre suas impressões em relação às medidas tomadas para enfrentamento do Covid-19
O incauto que lê que o dobro da raiz quadrada de quatro iguala-se ao logaritmo decimal de dez mil pode simplesmente achar que se fala aqui de algo mais complexo que dois mais dois ser igual a quatro. Assim funciona com qualquer informação: é possível apresenta-la de uma forma simples ou didática, extensa, artística ou mesmo científica, mas o conteúdo é o mesmo, sim, embora a emoção transmitida – e cooptada – pode ser incrivelmente diferente. As informações do coronavírus poderiam ter sido difundidas de uma forma menos midiática. Desde janeiro deste ano, o mundo é bombardeado com informações sobre a pandemia “do vírus do morcego” que atinge o planeta e que poderá matar milhões de pessoas.
Curvas de disseminação do vírus na sociedade foram apresentadas e, com elas, uma proposta para achatá-las, como a grande solução para que a epidemia não causasse uma desproporção na capacidade de construir caixões com a necessidade de ocupá-los com sua vitimas. Os médicos ainda sem informações oficiais da China não tinham como se manifestar e, como já publicado anteriormente, a mídia assumiu o papel de cientista/epidemiologista/ infectologista. Com o passar do tempo, já existem muitas informações para apresentar, mas a verdade é muito mais simples e os interessados ficam convidados a analisar esses dados.
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O SARS Cov-2 – o agente etiológico desta doença, a Covid-19 (coronavirus infection disease 2019) – é um vírus que atinge os seres humanos e que os utiliza como hospedeiros, para se replicar. Para tanto, usa receptores celulares para entrar e se multiplicar e, ao sair da célula, a mata. É eliminado por gotículas de saliva e aerossóis da respiração dos portadores.
Na imensa maioria dos pacientes, numa proporção ainda não exatamente calculada e que varia conforme o perfil epidemiológico de cada sociedade – mas que ronda quatro em cada cinco pessoas infectadas, essa virose passa desapercebida, o paciente não sente nada, por isso é chamado de assintomático. Estes pacientes são portadores do vírus por alguns dias e neste período podem disseminá-lo. Quase impossíveis de serem identificados, estes pacientes descobrem que têm a doença ao realizar exames ao identificarem familiares sintomáticos ou que, por algum motivo, realizaram o exame.
Da pequena fatia restante (um quinto), 80% apresentam uma forma leve com sintomas discretos ou moderados de febre e tosse, podendo ser acompanhadas de diarreia, calafrios, dores pelo corpo e anosmia, que é a perda do paladar. Estes pacientes também são vetores: como podem transmitir para outros, então devem ser isolados para evitar o contágio. A grande diferença do vírus está aí: quando comparado com outras viroses, o SARS-CoV-2 tem uma capacidade muito maior de passar de uma pessoa para outra. Estes pacientes sintomáticos, porém sem gravidade, permanecem tratados em casa, com medicações para aliviar os sintomas e, num período entre duas a três semanas, estão completamente recuperados.
Dos 20% restantes dos sintomáticos, três em cada quatro apresentam a forma grave. São internados e necessitam de medicações endovenosas, oxigênio e acompanhamento do quadro pulmonar, através de exames como a tomografia computadorizada e exames de laboratório, como D-dímeros. Eles acabam respondendo ao tratamento e se reabilitam.
Um quarto dos casos torna-se graves e necessita internação em CTI, alguns com uso de respiradores, corticoides e imunomoduladores, antibióticos para infecções associadas, hemodiálise e uma grande gama de medidas terapêuticas são escolhidas caso a caso. Mesmo assim, a maioria destes sobrevive. As fatalidades ocorrem sim, mas correspondem apenas à ponta de um iceberg gigantesco.
A mídia fala muito em dezenas de milhares de óbitos no Brasil. Sim, é verdade. Todavia, são confirmados já centenas de milhares de casos e a maioria destes já estão curados e reestabelecidos na sociedade. O número de portadores assintomáticos pode ainda ser maior do que calculado, pois os casos graves são sempre testados, já os sintomáticos na maioria, mas poucos são os países que têm testado em massa para informar corretamente.
O fato é que o Covid19 vai atacar – com ou sem isolamento, com ou sem medidas de lockdown ou shutdown – milhões ou até bilhões de habitantes antes de se tornar uma doença endêmica (casos espalhados sem potencial de causar vários infectados ao mesmo tempo no mundo). Isto não é o fim do mundo, nem de perto, nem de longe, isso porque 99% dos infectados sobrevivem. Milhares de pessoas morrerão, mas vítimas de doenças como cólera, dengue, malária, câncer, infarto, acidentes automobilísticos, violência doméstica, frio, desidratação.
O entendimento pode ajudar a tranquilizar a sociedade e melhor ajudá-la a se adaptar para diminuir estas perdas – pois sim, são vidas, e como tal devemos lutar para defendê-las. Sabe-se, observando as outras epidemias virais, que antes de uma epidemia passar e restar caos endêmicos isolados, que 60% a 70% da população deve ter sido exposta, seja ao vírus ou às vacinas. Vacina para o Covid-19 já estão em andamento, mas sua aplicabilidade na sociedade – pensando em imunizar centenas de milhões de doses – ainda está longe da atual realidade.
A maioria da população provavelmente terá contato com o vírus, mas é importante destacar que quase todos sobreviverão. Nem todos respondem igual ao vírus; por isso, é importante descobrir quem morre e por quê. No momento, sabe-se com certeza que a idade é o principal fator de risco para o desenvolvimento da forma grave, e as fatalidades ocorrem mais numa relação proporcionalmente direta com o avanço da idade. Além da idade acima de 65 anos, fatores como obesidade e doenças associadas (como hipertensão arterial e diabetes principalmente) pioram o prognóstico, levando a uma evolução mais desfavorável.
Sim, o Presidente do Brasil estava certo e a epidemiologia já pode atestar. Vários estudos científicos e dados oficiais de vários países confirmam que a mortalidade pelo Covid-19 em pacientes com idade inferior a 50 anos é menor que da influenza e do H1N1, sendo incrivelmente raro ser letal em jovens abaixo de 20 anos. Idosos sem comorbidades, mesmo acima de 75 anos, têm baixa letalidade, porém de forma maior que a gripe, sendo díspar das outras viroses apenas quando se associa idade e mais de dois fatores de risco.
A questão que fica agora: como manejar estes números e tirar vantagem disso no combate ao vírus? É necessário mais de 60% da população imunizada (imunidade de rebanho, como é conhecida) para controlar a epidemia. É preciso devolver a vida normal a crianças e jovens. Adultos sadios devem retomar o trabalho e a sociedade deve enfrentar o vírus de forma a evitar que o sistema de saúde fique incapacitado. Lavando as mãos, usando máscaras e distanciamento social (evitando grandes aglomerações) propiciarão que essa fatia da população enfrente o vírus e, neste meio tempo, isolar os idosos, especialmente os portadores de fatores de risco, para que a sociedade imunizada em dois a três meses possa lhes dar a segurança para viver normalmente.
Vale lembrar que o Covid-19 não vai embora, não importa o que seja feito (até hoje a humanidade apenas conseguiu erradicar a varíola). A população convive com perdas diárias, e não menos importantes de pacientes que sucumbem por H1N1, gripe sazonal, dengue, febre amarela, malária, cólera e tantas outras infecções, e terá sim que conviver com o Covid-19 e outros vírus que ainda virão, trazendo sempre consigo no início um grande número de fatalidades e tantas outras de forma endêmica por décadas.