A opinião pública acerca da obrigatoriedade da vacinação contra o Covid-19 está longe de um consenso. Como a pandemia desde o início foi marcada por uma guerra de posições políticas, não seria diferente quando o debate chegasse às medidas necessárias para a sua contenção. Desde que a polêmica decisão do STF garantiu a autonomia dos estados e municípios para gerência da saúde, fruto de uma medida cautelar patrocinada pela OAB, o Governo Federal tem feito o possível para garantir que não haja nenhuma violação de direitos individuais no combate ao vírus chinês. O certo é que não haverá meio termo: um grupo correrá para a fila, enquanto outro irá para as ruas protestar.
Desde que as medidas restritivas foram propagadas pela grande mídia, muitos políticos tomaram para si, de pleno direito, as rédeas de como conduziriam as ações nos seus respectivos estados ou municípios. Um dos símbolos dessa bizarra guerra contra o Governo Federal é João Dória, que além de se eleger nas costas da popularidade de Jair Bolsonaro, correu para os braços dos chineses logo que a pandemia avançou. Muitos viram que aquele discurso ruidoso contra Lula não passou de uma balela eleitoreira para chegar ao Governo do Estado de São Paulo. Muito embora o presidente Jair Bolsonaro tenha garantido que não irá impor a obrigatoriedade da vacina, João Dória já pontuou que, nas pendências do seu estado, todos os cidadãos serão obrigados a tomá-la.
João Doria segura uma caixa da vacina contra à Covid-19 produzida pela empresa chinesa Sinovac Biotech no Hospital das Clínicas de São Paulo, em 21 de julho de 2020 (Crédito: AFP)
O presidente Jair Bolsonaro tem divulgado na imprensa e nas suas redes sociais que o caráter obrigatório da vacinação somente poderá ser determinado pelo Ministério da Saúde, decorrente de lei da década de 1970. Mesmo assim, como pode ser conferido no vídeo a seguir, ressaltou que, embora reconheça o direito de cada brasileiro receber a vacina, isso não implica qualquer obrigação. Mais uma vez: trata-se de um “direito”, não de uma “obrigação”.
No dia 18 de outubro, o ex-candidato a Presidência da República pelo Partido Novo, João Amoêdo, divulgou a seguinte nota na sua conta do Twitter, que tem sido alvo de inúmeras críticas nas redes sociais:
A vida em sociedade pressupõe liberdade com responsabilidade.
Quem decide não tomar vacinas, que evitam doenças contagiosas, não deveria poder frequentar espaços públicos, ruas, hospitais e escolas. E sim, permanecer isolado até que todos os demais sejam vacinados.
A postagem de Amoêdo não é apenas contraditória pelo fato de que, nas eleições de 2018, advogou o liberalismo em larga escala nacional, talvez mais que Jair Bolsonaro. Desde que perdeu as eleições de forma vergonhosa, com baixíssima votação, passou a atacar o Governo Federal de forma que surpreendeu até mesmo os seus fiéis escudeiros liberais, que já não reconhecem a postura do banqueiro.
Bia Kicis, deputada federal do PSL-DF, protocolou recentemente projeto de lei que suprime a menção direta à vacinação compulsória no rol de medidas a serem adotadas no combate ao Covid-19. De acordo com a deputada, o art. 15 do Código Civil é claro quando afirma que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Na sua conta do Twitter, foi direta ao ponto ao dizer que “ninguém é obrigado a ser cobaia”.
Outros tantos como o jornalista e escritor Guilherme Fiuza, o deputado federal Luiz F. Bragança e o grupo Médicos pela Liberdade fizeram postagens criticando qualquer medida compulsória que obrigue a população a ser vacinada:
Passo Fundo: a ideia de “vacinação obrigatória” vem já de outros carnavais
Em 2018, Luiz Miguel Scheis protocolou o Projeto de Lei n. 0064/2018, que institui o Programa “Carteira de Vacinação em dia, Criança Sadia”. Dois são os artigos que mais chamam a atenção. Acompanhe, a seguir, a fala do vereador sobre o Projeto criado:
Segundo o art. 1º do PL: “Ficam os pais de crianças em idade de vacinação, ou os seus responsáveis, obrigados no início do ano letivo a apresentar, no ato da matrícula ou rematrícula escolar em estabelecimento de ensino, público ou privado, Caderneta de Saúde da Criança contendo o registro da aplicação das vacinas obrigatórias à sua idade, inclusive a da paralisia infantil, sarampo e demais vacinas oriundas de campanha nacional.”
Ainda, conforme o art. 4º: ” Em caso de descumprimento ao disposto nesta Lei, o estabelecimento de ensino deverá comunicar formalmente a situação da criança ao Conselho Tutelar Municipal, para as devidas providências e reparação de direitos, sem quaisquer prejuízos à manutenção do ano letivo da criança.”
O vereador justificou o projeto destacando que muitas doenças que já haviam sido erradicadas, como o sarampo, estão voltando a se tornar um problema de saúde pública por conta do crescente número de casos detectados. Para o vereador, o maior problema reside na negligência dos pais com a saúde dos filhos, o que motivou a criação do Projeto.
Scheis afirmou na ocasião que duas das medidas sugeridas como punição motivariam os pais a deixarem a carteira de vacinação dos filhos em dia. Em primeiro lugar, a de impedir que os filhos tenham acesso ao sistema de ensino. Em segundo, a possível perda da guarda dos filhos.
Ainda naquele ano, em 2018, quando ainda os resquícios da aliança PT/MDB davam as cartas no Brasil, foi divulgado pelo Ministério da Saúde manifesto realizado por sociedades médicas em prol da vacinação, sobretudo em relação ao sarampo e ao pólio. Na ocasião, o Brasil enfrentava dois surtos de sarampo, em Roraima e Amazonas.
É de se questionar o fato de se criar uma lei municipal na qual se constata medidas impositivas. É preciso lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê multa e outras consequências para esses casos, tratados como negligência por parte dos pais que optam por não vacinar os filhos. Além disso, muitas escolas já solicitam que a carteira de vacinação seja apresentada. Será que as escolas farão o mesmo filtro com a vacina contra o Covid-19?
Para retomar a lucidez
Vacina pode ser um “direito de todos”, mas não uma “obrigação de todos”. Mesmo que o Governo Federal tenha garantido que não obrigará nenhum brasileiro a tomar a vacina, sabe-se que o um canetaço do STF pode dar poderes ditatoriais para governadores e prefeitos impor suas respectivas medidas de saúde. O certo é que haverá movimentos opostos e que não serão capazes de chegar a qualquer consenso sobre o assunto. No entanto, se a vacina é de boa qualidade, que preocupação terá aquele que se submeteu à mesma? Talvez o meio-termo seja a racionalidade de ambos os lados: quem se vacinou estará imune, quem não se vacinou assumirá os riscos das suas escolhas. De qualquer sorte, independentemente do lado que a população estiver nessa briga, o direito de escolha deve estar acima de qualquer decreto ditatorial assinado por um político de ocasião.