Com a intenção de sustar quatro decretos do presidente Jair Bolsonaro que desburocratizam o acesso à armas, parlamentares apresentaram 14 decretos legislativos contra as medidas
Uma das principais promessas de campanha de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 era trabalhar pela desburocratização do acesso a armas no Brasil. Quem é mais jovem não sabe, mas houve tempos em que, em terras tupiniquins, era possível comprar um revólver até em loja de materiais de construção. Da década de 1990 em diante, o cerco se fechou. Promessas internacionais e legislação nacional foram, pouco a pouco, arrefecendo uma liberdade individual, agora cada vez mais cerceada pelo interesse de muitos na manutenção dos altos índices de criminalidade.
Num contexto pós-Segunda Guerra Mundial, os países começar a discutir, em foros multilaterais, muitos dos quais nas pendências da ONU, o que seria acordado em relação às armas nucleares. No que talvez tenha sido uma brecha normativa, entrou na discussão a questão do acesso a armas de uma maneira geral. Criado em 1968, entrando em vigor internacional em 5 de março de 1970, Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares não foi assinado pelo Brasil inicialmente. Na ocasião, o representante brasileiro, Araújo Castro, disse que o acordo promoveria um congelamento do poder mundial, dado o baixo número de países com a tecnologia. Esse tratado é baseado num tripé: não proliferação, uso da energia para finalidades pacíficas e o desarmamento nuclear. O governo brasileiro depositou o Instrumento de Adesão do referido Tratado, em 18 de setembro de 1998, passando o mesmo a vigorar para o Brasil, em 18 setembro 1998, muito embora ainda não o tenha ratificado. Mesmo assim, vale destacar o artigo VI do tratado:
Cada Parte deste Tratado compromete-se a entabular, de boa fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação em data próxima da corrida armamentista nuclear e para o desarmamento nuclear, e sobre um Tratado de desarmamento geral e completo, sob estrito e eficaz controle internacional. [grifo nosso]
Em 2003, com o Estatuto do Desarmamento, o cerco se fechou. Passados quase 20 anos, os índices de criminalidade tornaram o Brasil um dos países com o maior número de homicídios do mundo, sem contar os demais dados relacionados à violência urbana de uma maneira geral.
De volta a Bolsonaro, foram publicados em 12 de fevereiro os quatro decretos editados pelo presidente para desburocratizar e ampliar o acesso a armas de fogo provocaram expressiva reação contrária de senadores. Até o momento foram apresentados 14 projetos de decreto legislativo (PDLs) com o objetivo de sustar os decretos do Executivo, comprovando que há uma nítida guerra entre parte do Senado contra Bolsonaro.
Com o objetivo de regulamentar o Estatuto do Desarmamento, as novas normas — que entram em vigor em 60 dias — permitem que profissionais autorizados, além de colecionadores, atiradores e caçadores (CAC), possam comprar mais armas e munições; modificam os critérios para análise do pedido de concessão de porte; e reduz a lista de artefatos classificados como Produtos Controlados pelo Exército (PCEs), entre outras medidas. Nota do Palácio do Planalto esclarece que “o pacote de alterações dos decretos de armas compreende um conjunto de medidas que, em última análise, visam materializar o direito que as pessoas autorizadas pela lei têm à aquisição e ao porte de armas de fogo e ao exercício da atividade de colecionador, atirador e caçador, nos espaços e limites permitidos pela lei”.
Contra os quatro decretos, o PDL 69/2021, do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), em sua justificação, atribui a Bolsonaro o uso de meio ilegal e inconstitucional para realizar sua “obsessão em tentar eliminar qualquer regra que restrinja o acesso às armas no Brasil”. Randolfe é um daqueles senadores que faz uso do mandato para sustar qualquer coisa relacionada a Bolsonaro. É certamente a maior pedra no sapato no pé de cada brasileiro de bem.
Expressando apoio a manifestações de indignação de organizações não governamentais desarmamentistas, o parlamentar questionou a legalidade de vários pontos dos decretos, incluindo o que confere validade nacional ao documento de porte de armas — o Estatuto do Desarmamento, conforme frisou, estabelece que a autorização poderá ser concedida com eficácia territorial limitada. Da mesma forma, Randolfe entende que os atiradores receberam, na prática, a concessão de “porte velado”, numa “inovação que cria direito e extrapola o suposto poder regulamentar do decreto”. Certamente, é um exagero do senador, mostrando sinais de histerismo:
“O governo federal decidiu que sua prioridade é continuar com o desmonte da já combalida política de controle de armas e munições do Brasil. Isso não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”.
Através do PDL 73/2021, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) também questionou a legalidade das normas presidenciais, afirmou que é “consensual” o entendimento de que o Estatuto do Desarmamento reduziu o número de mortes violentas no Brasil, vinculou o aumento de armas legais em circulação ao abastecimento do crime organizado e associou a coincidência da publicação dos decretos com a divulgação de estatísticas que apontam aumento de 5% no número de homicídios no Brasil em 2020. Para piorar, misturou argumentos desarmamentistas com pandemia e carnaval:
“O momento da publicação desses decretos não poderia ser pior. Às vésperas do carnaval, buscou-se evitar o debate público sobre os impactos das mudanças propostas. Em meio a uma pandemia que já vitimou mais de 240 mil brasileiros”.
Autor do PDL 55/2021 e outros três projetos de sustação dos decretos, o senador Paulo Rocha (PT-PA) lembrou que, independentemente das “convicções pessoais” de Bolsonaro a favor das armas de fogo, “não é possível a edição de norma visando aumentar o armamento da população enquanto vigora em nosso ordenamento lei instituído o Estatuto do Desarmamento.” Paulo Rocha acrescentou que, já em 2019, Bolsonaro teria extrapolado seu poder regulamentar ao editar outro decreto de flexibilização do porte de armas. Na época, o decreto foi rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e revogado pelo próprio governo através de uma nova norma.
Em termos semelhantes, através do PDL 58/2021, o senador paraense denunciou o esvaziamento do poder do Exército na fiscalização de produtos controlados, entre os quais citou prensas para recarga de munições e miras telescópicas: “As alterações promovidas nos aproximam de episódios trágicos da história de outros países, tais como o atentado à escola em Columbine ou o assassinato do então presidente Kennedy por um sniper (atirador de elite), ambos nos Estados Unidos”, avalia. Paulo Rocha ainda apresentou os PDLs 57/2021 e 74/2021 sobre o tema .
A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) — que também propôs os PDLs 63/2021, 62/2021 e 64/2021 — definiu, em seu projeto de decreto legislativo 59/2021, a natureza do decreto como contrária à vocação nacional, traidora da democracia e “a favor da morte como condutora da relação entre as pessoas”. Ela rejeitou o argumento de que a iniciativa possa aumentar a segurança dos cidadãos e associou a ampliação do porte legal de armas aos interesses econômicos do crime organizado “que certamente encontrará uma nova fronteira rentável para suas atividades ilícitas”.
O senador Rogério Carvalho (PT-SE), em seu PDL 65/2021, afirma que o decreto relativiza proteção estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, além de configurar “flagrante conflito de interesses” ao permitir a comprovação de capacidade para manuseio de arma de fogo por declaração de associações ou federações de tiro. No PDL 64/2021, também de sua autoria, o parlamentar manifesta preocupação com os termos do decreto que, segundo ele, ignoram “todos os problemas que enfrentamos no Brasil com a letalidade policial” e “podem gerar condições ainda mais propícias para a atuação das milícias”. Rogério Carvalho ainda tratou da sustação do decreto no PDL 66/2021.
Nas redes sociais, parlamentares não se cansam de passar vergonha. O senador Jaques Wagner (PT-BA) comemorou no Twitter a iniciativa da bancada de seu partido para sustar os decretos presidenciais — definidos como tentativa de Bolsonaro de “impor sua cultura de morte ao Brasil”:
“Enquanto a população brasileira clama por vacinas, auxílio emergencial e empregos, o governo federal se preocupa em armar mais as pessoas.”
Ele ainda acusou o presidente de preocupar-se exclusivamente com sua base ideológica, e “também despreza que, apesar do aumento de 91% no registro de novas armas no ano passado, cresceu o número de assassinatos. Ou seja, as armas expõem mais as pessoas à violência.”
Além dos PDLs, Eliziane Gama anunciou em rede social a apresentação do PRS 12/2021, que cria a Frente Parlamentar pelo Desarmamento:
“Vamos propor um amplo debate com a sociedade civil, órgãos de segurança e parlamentares para mostrar que liberar armas não é solução para garantir segurança ao cidadão.”
Eliziane também apresentou o PL 479/2021 com o objetivo de proibir doações a campanhas eleitorais por pessoas físicas vinculadas à indústria e comércio de armas e munições e associações de tiro.
O senador Humberto Costa (PT-PE), que clamou por “menos armas, mais vacina” pelo Twitter, anunciou que recorreria ao Ministério Público Federal contra os decretos de flexibilização de armas. No mesmo sentido, Rogério Carvalho lamentou no Twitter os 240 mil mortos pela covid-19:
“Uma tragédia que segue acontecendo todos os dias, todas as horas, a cada minuto. Brasil não precisa de mais armas, precisa de vacinas e com urgência!”
Fabiano Contarato explicou pela rede social seu projeto de decreto legislativo contra os decretos presidenciais, argumentando que “mais armas geram mais insegurança e violência. O que o país precisa é de vacina! É de cuidado com a saúde da população e de políticas de combate ao coronavírus.” Ele complementou:
“Desde 2019, cresceu o número de armas circulando no Brasil. Há, hoje, mais de 1,15 milhão de armas nas mãos de cidadãos, um crescimento de 65% em relação a dezembro de 2018, quando havia pouco menos de 700 mil armas legais em circulação. Política armamentista não!”
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) comunicou pelo Twitter seu apoio “para frear a banalização dar armas”, frisando que “a sociedade quer vacina, não armas”.
Por fim, ao menos por um pouco de bom senso, a favor dos decretos, que classificou como “uma defesa do sagrado direito à legítima defesa do cidadão”, o líder do PSL no Senado, Major Olímpio (SP), reproduziu entrevista que concedeu à Jovem Pan na qual afirmou que “as armas ilegais são as que estão nas mãos dos ilegais” e “nenhuma arma de colecionador ou atirador é extraviada ou usada indevidamente para atacar qualquer pessoa”. Em outra postagem, reproduziu entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, reiterando que os decretos “apenas flexibilizam burocracia, mas em nada estão extrapolando o que já é legislação sobre posse e porte de armas de fogo no Brasil.”