Segundo os envolvidos, o repertório clássico estudado em Oxford, abrangendo de Mozart a Beethoven, estaria dando muito foco a “música europeia branca do período escravo”. Além disso, outra proposta de reforma seria repensar os estudos sobre notação musical ocidental, por tratar-se de um “sistema representacional colonialista”.
É possível que estejamos num período de declínio de nossa civilização ocidental. Provas disso podem ser encontradas na frequência com que, nos últimos dois séculos, nossos componentes civilizacionais mais valiosos (religião, língua, estrutura familiar e cultura) são atacados ou desconstruídos.
Recentemente noticiado pelo jornal The Telegraph, estudantes e integrantes do corpo docente da Universidade de Oxford, na Inglaterra, propuseram reformas para “descolonizar” os currículos de graduação em Música, buscando “diminuir a hegemonia da cultura europeia branca”. Segundo os envolvidos, o repertório clássico estudado em Oxford, abrangendo de Mozart a Beethoven, estaria dando muito foco a “música europeia branca do período escravo”. Sim, você leu isso mesmo. Além disso, outra proposta de reforma seria repensar os estudos sobre notação musical ocidental, por tratar-se de um “sistema representacional colonialista”. Essas propostas ocorreram depois da pressão dos protestos realizados pelo movimento Black Lives Matter, em junho de 2020, em Londres. Por que essas reformas e acontecimentos merecem a nossa atenção? Porque são movimentos na superfície de tormentas mais profundas e catastróficas.
Se você já ouviu palavras como partitura, clave de Sol, bemol ou sustenido, então já ouviu algo sobre notação musical. É o sistema de escrita gráfica para registrar músicas e sons. Civilizações diferentes possuem formas diferentes desse registro. As raízes da notação musical no Ocidente remontam ao século VI, com as obras do filósofo Boécio introduzindo os estudos pitagóricos sobre as relações numéricas da música no mundo medieval. Mais tarde, o Papa Gregório I fundou a chamada Schola Cantorum, instituição que aprimoraria cada vez mais a notação, desenvolvendo o conhecido Canto Gregoriano. 350 anos depois, o italiano Guido D’Arezzo desenvolveu o solfejo, a arte de ler as notas em sequência em uma partitura. Esses sistemas seriam aprimorados cada vez mais com os compositores barrocos e renascentistas, estabelecendo as bases da arte musical do Ocidente. Não é difícil perceber que suas origens são anteriores ao período colonial ou do início do comércio de escravos africanos para as Américas. Então por que desconstrui-la ou bani-la sob o argumento de ser um “sistema representacional colonialista”?!
E quanto a Mozart ou Beethoven serem a expressão da “música europeia do período escravo”? Basta vasculhar algumas biografias desses compositores para perceber a ausência de pretextos escravagista ou colonialista como motivação de suas obras. Sob o argumento de tornar os currículos mais inclusivos, rebaixam-se grandes clássicos a meras expressões locais. Nada mais nefasto para a alma humana.
Conquistas civilizacionais sobre a arte, cultura, filosofia e espiritualidade são expressões de valores universais. Elas ultrapassam o momento histórico, as circunstâncias políticas e as modas do momento em que nasceram. Esses componentes elevados possuem universalidade porque atingiram verdades sobre a realidade e a alma humana. Homero, Dante, Shakespeare, Michelangelo, Bach, Beethoven não falaram ou compuseram apenas para os homens de seu tempo, mas para os de todos os tempos.
Otto Maria Carpeaux, um indubitável conhecedor da cultura ocidental, em sua Uma Nova História da Música (1977), afirmou claramente:
“A arte de Beethoven é o maior documento humano em música. Se desaparecesse do nosso horizonte espiritual, a humanidade teria deixado de ser humana. Estão indissoluvelmente ligados o destino da música beethoveniana e o destino da nossa civilização”.
O revisionismo histórico, cultural e artístico impulsionado por agendas ideológicas revolucionárias, promovem um grande declínio espiritual ao reduzir as mais elevadas conquistas civilizacionais (entre essas conquistas, a própria Universidade onde os ativistas fazem barulho) como meros produtos elitistas ou supremacistas. Reduzir a cores aquilo que é universal é demonstrar um horizonte de consciência muito limitado.
O que está em jogo não são apenas discussões sobre música, compositores e currículos universitários. O que está em jogo é o destino espiritual da nossa civilização. A invasão vertical dos bárbaros está em pleno vapor. Desconhecer o que está se passando nas estruturas fundacionais que permitiram sermos o que hoje somos é dar espaço a uma destruição irreversível. Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados. Porque no final, com dizia Martin Luther King, nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio sobre as coisas que importam.
*Cidney Antonio Surdi Junior
Professor e pesquisador na área de história da educação, filosofia e cultura. Criador do canal Filosofando Podcast e pai do Dante.