“Claro, poderíamos chamar todos esses jornalistas de hereges contanto que a ortodoxia do jornalismo fosse a busca e apresentação da verdade. Não podemos, porém, enquadrá-los como hereges, porque a mentira, há décadas, é a ortodoxia do jornalismo brasileiro.”
O comportamento normal dos jornalistas da grande mídia brasileira é semelhante ao dos heréticos que se alastraram no seio do cristianismo. Uma das características centrais de um herege é professar a si mesmo como um membro de uma comunidade e perverter insistentemente, desde dentro, suas doutrinas, costumes, moral e fé, em nome da defesa do que chama de verdade. O herege jamais é alguém de fora – jamais. Um muçulmano jamais será herege na fé católica ou anglicana, mas um sunita que se meta a interpretar o Corão a seu bel-prazer será executado por heresia. E o herege, como de costume, não descaracteriza completamente toda a fé de uma vez só. O seu hábito comum não é alterar, mas a arte da seleção: pinçar aquele ou este ponto e reduzí-lo ou enaltecê-lo desproporcionalmente, como alguns gnósticos cristãos, que elevaram tanto a divindade de Jesus que acabaram sumindo com a sua humanidade; ou como alguns teólogos modernos que humanizaram tanto o Cristo que perderam de vista o próprio Deus.
O jornalista herege é aquele que, sendo identificado publicamente naquela profissão, deturpa o fato, através da deliberada seleção e ênfase parcial das informações que o compõem.
Eis o drama por trás dos anúncios da mídia. Em parceria com o governo brasileiro de Dilma Rousseff, em abril de 2016, e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a ONU Mulheres soltou mais um documento-base para o alastramento da confusão: ‘Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres – feminicídio’, documento que é uma versão adaptada do Modelo de Protocolo latino-americano para investigar as mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio), elaborado pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos em 2014. A ONU montou e o governo nacional adaptou. Adaptou mal por sinal.
A heresia é patente: violenta o Código Penal brasileiro, art. 121, inciso VI. Desde 9 de março de 2015, com a Lei n°13.104, o Brasil prevê o feminicídio como circunstância qualificadora de crime de homicídio, definindo-o como tal quando ocorre “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” e considera que “há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve” (I) “violência doméstica e familiar” e (II) “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Contraditoriamente, o objetivo declarado do documento das Nações Unidas é “sensibilizar as instituições e a sociedade sobre sua [feminicídio] ocorrência e permanência na sociedade, combater a impunidade penal nesses casos, promover os direitos das mulheres e estimular a adoção de políticas de prevenção à violência baseada no gênero”.
Bem, se o tal Modelo de Protocolo pretende ser uma versão adaptada à realidade brasileira, o primeiro passo seria construí-lo em consonância direta e em nada dissonante do ordenamento jurídico brasileiro, neste caso, o Código Penal. A discrepância entre “gênero”, termo usado pela ONU, “sexo feminino” e “mulher”, utilizados na lei brasileira, não é sem razão ou por acaso. A coordenadora do grupo de trabalho interinstitucional que adaptou o documento, Wânia Pasinato, foi coordenadora sobre Acesso à Justiça e responsável pelo Programa de Enfrentamento à Violência da ONU Mulheres/Brasil, e tem o perfil ideal desejado pelas Nações Unidas: feminista, pró-Dilma, petista, a favor da descriminalização do aborto, contra a tal “cultura do estupro” e ávida defensora daquela Greve Geral de 28 de abril de 2017, que destruiu não somente Brasília, mas um dia inteiro do trabalhador.
Outra queridinha da ONU, sob cujos auspícios as diretrizes foram adaptadas, é Eleonora Menicucci, amiga pessoal e vizinha na faculdade da então presidente, Dilma Rousseff. Menicucci participou da luta armada no governo militar, é uma petista inveterada, apologista da legalização do aborto e, pasmem, gabou-se em 2004, quando ainda era ministra, de ter recebido treinamento na Colômbia para realizar abortos sem a ajuda de médicos por meio do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. Dona Eleonora comemorou o lançamento do documento. Não sem razão.
A dialética linguística entre a lei brasileira, que usa o termo sexo, e o Modelo de Protocolo das Nações Unidas, que utiliza gênero, tem o propósito específico de confundir os operadores do direito. Um dos gênios do mal que compreendeu a necessidade de alterar lenta e progressivamente a cultura pela linguagem foi Pierre Bourdieu. Ele admitiu plenamente, em A Economia das Trocas Simbólicas, que “o campo cultural transforma-se por reestruturações sucessivas e não através de revoluções radicais” [1].
Perfeitamente, as mudanças têm de ser sutis e sucessivas e este documento da ONU em parceria com o governo brasileiro serve exatamente para este fim. Quando o gênero entra em conflito com o sexo – sem uma definição, por assim dizer, dicionarística –, ocorre um conflito de esquemas lingüísticos e, das duas, uma: ou a palavra sexo será diluída confusamente pela indefinição da palavra gênero, ou sexosignificará a mesma coisa que gênero, ou seja, tudo e, ao mesmo tempo, nada. Tanto uma, como a outra, cumprem o objetivo: indeterminar o que possa significar a palavra sexo. Será, portanto, o documento da ONU que afrouxará ainda mais a interpretação do Código Penal e não o último que normatizará o primeiro. Eis a mágica da heresia.
Contudo, a insistência dos hereges não pára por aí. A lei que instaurou o feminicídio, instrumento reforçador das tão proclamadas diferenças entre homens e mulheres, entra em conflito não somente com as diretrizes da ONU, mas também com a Lei Maria da Penha (11.340/2006), principalmente em seu artigo 5°, que assim define a violência doméstica e familiar contra a mulher: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
A tensão lingüística ali intensionada da qual já fiz menção aplica-se ao caso acima, uma vez que a própria lei Maria da Penha também conflita diretamente com o Código Penal ao tratar de “ação ou omissão baseada no gênero”, e não no sexo, palavra que está certa e indubitavelmente atrelada à biologia. Parece truísmo dizer que a confusão da heresia não tem fim. Em verdade, em verdade vos digo: foi feita para o propósito de não ter fim.
Eis um caso recente da baderna entre sexo e gênero. Recentemente uma mulher – repito e trepito, MULHER – foi condenada pelo juíz da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Gonçalo, André Luiz Nicolitt, porque ela, mãe de um homem transgênero, segundo o magistrado, “agiu de forma ‘machista’ ao internar a filha [homem transgênero] à força”. Para a mãe, o filho estaria com problemas mentais. Para fundamentar sua decisão o juiz utilizou-se daquele indefinível e arqui-aplicado princípio da dignidade humana – o que quer que isso possa significar – e pomposamente citou ainda as feministas Simone de Beauvoir e Judith Butler.
Observação: Beauvoir, amante de Sartre, ficou conhecida pela frase “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” e Butler é aquela arquiteta do mal que uniu diferentes teóricos progressistas para criar o que podemos chamar hoje de ideologia de gênero. Foi a última que incutiu a idéia nas mentes iluminadas de que a questão de gênero deve ser “um objetivo político”, e “não apenas um pré-requisito metodológico e normativo” (livro ‘Problemas de Gênero’).
Sob esses “fundamentos” o juiz afirmou que o gênero é um conceito sociológico independente do sexo, logo, explicou ele, se a filha “se veste como mulher, se identifica socialmente como mulher, ingere medicamentos hormonais femininos, ou seja, [ele] se vê e se compreende como mulher, não possuindo terceira pessoa autoridade para a designar de outra forma”. Basta ver-se e compreender-se como mulher que a lei se aplica. Quem seria louco de pensar o contrário?
Terminando o show de horrores, o sr. Nicolitt concluiu que “convicções contrárias à orientação e identidade sexuais da pessoa não merecem acolhida nos dias de hoje”. Sexuais ou de gênero, senhor juiz? Percebem como a dialética lingüística já engoliu a consciência do sujeito? É algo semelhante ao que escreveu o controverso teórico da lingüística Benjamin Lee Whorf [2], “o pensamento segue uma rede de caminhos abertos no interior de uma linguagem particular, uma organização capaz de orientar de modo sistemático na direção de certos aspectos da inteligência ou de certos aspectos da realidade, descartando sistematicamente outros aspectos valorados por outras linguagens. O indivíduo é inteiramente inconsciente desta organização e completamente amarrado a estes liames intransponíveis”.
Para o propósito de eu não continuar em abstrações, façamos um rápido esforço imaginativo considerando apenas a tríade: Lei do Feminicídio (parte do atual Código Penal), Lei Maria da Penha e o Modelo de Protocolo da ONU. Dos três, apenas o último não é normativo, mas tem o propósito de orientar a interpretação dos anteriores. Os dois últimos consideram as mulheres como um gênero, o primeiro as define como sexo feminino. Pergunta: entre gênero e sexo, qual perspectiva hermenêutica orientará a deliberação e categorização de um crime de homicídio? O único deles que qualifica o assassinato contra a mulher de sexo biológico é o Código Penal, nos dois últimos qualquer um que alegar ser mulher poderá ser amparado. Em 2016, o STJ, no conflito de competência 88.027, deliberou um entendimento fixando que a Lei Maria da Penha pode se aplicada tanto para homens quanto para mulheres, como no caso mencionado. Houve outro caso ainda mais curioso, desta vez em Cuiabá, no qual um homem, que se entendia como homem, agredido por uma mulher foi amparado pela mesmíssima lei.
O intento, por fim, não é alterar desde cima, através do Congresso Nacional, as leis brasileiras. É, porém, desde baixo, a partir das crescentes jurisprudências conflitantes, provocar instabilidade na aplicação das mesmas forçando, paulatinamente, a Casa de Leis nacional a atualizar sua legislação como se tivesse havido uma mudança social espontânea, e não uma estratégia calculada para tal fim. O caos jurídico premeditado, a total contradição entre as pequenas decisões locais, a incompreensão por parte da população a respeito das leis que a constrangem e, por tudo isto, a constante necessidade de reformar e remendar o ordenamento jurídico servem a um único propósito: a destruição da ordem presente, em nome de uma nova, desconhecida, incerta e incontrolável situação.
E os heréticos continuam. Não bastasse intentarem dissolver a ordem atual em nome de um futuro incognoscível, a estatística entra em jogo. O Atlas da Violência 2017, publicado pelo Ipea, contabilizou 60.000 homicídios no Brasil no ano de 2015, doze mil a mais em comparação com 2005. O alarmismo em relação ao feminicídio se deve as 4.621 mulheres assassinadas dois anos atrás, ou seja, 4,5 a cada 100.000. Se considerarmos apenas os jovens entre 15 e 29 anos, que abarcam metade dos homicídios, a taxa é de 60,9, entre jovens homens e mulheres. No universo de jovens homens apenas, a taxa dobra para 113 a cada 100.000. Do total de homicídios, 92% são homens.
Percebem a heresia, a arte de selecionar e enfatizar? Por que não criar um Modelo de Protocolo que oriente a investigação, punição e apuração dos assassinatos contra este grupo que compõe praticamente toda a estatística? Por que elevar justamente apenas 8% como se fossem aqueles noventa e dois? Como enquadrar alguém vítima de assassinato nestas estatísticas sem colher a última declaração do defunto sobre si mesmo?
Conversando sobre esses problemas com um dileto amigo e promotor da justiça, fui alertado de que, constitucionalmente, o feminicídio deve ser julgado por júri popular, constituído de leigos. Ao que me parece, a única possiblidade de haver sensatez num tribunal é submeter as contradições lingüísticas à realidade tal como percebida pelo povo, até agora não imiscuído na heresia da selecionar e enfatizar. Populares são muito mais sensíveis aos sentidos que operadores do direito obcecados por palavras escritas como se estas cumprissem o desejo dos gnósticos e moldassem o mundo.
A confusão demoníaca não termina aqui. Se combinarmos os conflitos de sexo e gênero entre as leis e construção das estatísticas, temos uma quimera ainda pior. Se toda a definição de gênero depende de como o indivíduo enxerga e compreende a si mesmo, conhecível apenas se ele a verbaliza, qual indelével método de necromancia poderia ser utilizado para descobrir a auto-definição do indivíduo no momento mesmo da sua morte? Que lei ou operador do direito seria capaz de dizer com acerto qual o último gênero da vítima quando foi assassinada? Quem teria o poder de colher esta informação para saber se, por exemplo, uma mulher que apanhou e foi morta por seu marido, no momento de sua morte e num acesso de raiva e auto-negação, sentiu-se homem? Seria isto um feminicídio, ou apenas um homicídio sem qualificadora de crime? A designação do crime torna-se impossível. Como expressou um amigo promotor de justiça, “a partir do momento em que a verdade é submetida a um sentimento ou desejo, toda e qualquer certeza jurídica desaparece”.
A heresia não parece ter fim. E não terá fim. O trabalho de desmantelá-las é desproporcionalmente mais extenso e chato, pois a mentira é sempre curta e rápida, já a verdade é detalhada e minuciosa. Basta uma manchete dizendo Brasil registra oito casos de feminicídio por dia, diz Ministério Público (G1, 23/08/17) para a confusão se alastrar e os 92% dos homens mortos serem esquecidos pelo simples fato de não serem mencionados. Não é mentira, mas trata-se omissão, seleção e ênfase desproporcionada.
Claro, poderíamos chamar todos esses jornalistas de hereges contanto que a ortodoxia do jornalismo fosse a busca e apresentação da verdade. Não podemos, porém, enquadrá-los como hereges, porque a mentira, há décadas, é a ortodoxia do jornalismo brasileiro.
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Texto original publicado em: http://www.impresso.info/2017/09/04/feminicidio-e-heresia/
[1] A Economia das Trocas Simbólicas, tradução Sergio Miceli et alli. 8ª ed. São Paulo : Perspectiva, 2015, p.208.
[2] Language, Thought and Reality, a review of general semantics, 9, n°3, p. 167-8.