Vivemos tempos nos quais as práticas políticas, mesmo aquelas não contaminadas pela corrupção, são vistas com desconfiança pela sociedade. Todas as alianças de partidos são tidas como acordos espúrios, todas as negociações são interpretadas como conchavos, todas as nomeações são vistas como parasitismo da Administração. Esse sentimento se intensificou com o advento da Lava Jato; a operação, que nasceu para coibir o desvio de dinheiro público, acabou por demonizar a política ao tratar todos aqueles que nela estão como uma casta de oportunistas que não se diferem.
Jair Bolsonaro é dos poucos integrantes do mundo partidário que foram beneficiados por esse contexto. Ainda que seja parlamentar desde 1991, não é tido como figura desse establishment amplamente rejeitado. É por isso que sua candidatura presidencial é tida de forma diferente das demais: para muitos, seria aquela capaz de mudar o mecanismo que se estabeleceu em Brasília.
Ser visto como antítese daquilo que é rejeitado não traz apenas louros. Ao mesmo tempo, carrega-se o fardo de emular as virtudes que caraterizariam uma alternativa ao que está aí. Afinal, se nada pode se esperar daqueles que supostamente são a representação de um status quo nefasto, tudo há de ser cobrado daquele que se pretende como novo.
Essa longa introdução para chegar em Walderice Santos da Conceição, que até essa semana estava lotada no gabinete de Bolsonaro. Acusada pela Folha de São Paulo de ser funcionária fantasma, pediu demissão após a repercussão do episódio. Segundo o jornal, ela prestava serviços particulares ao parlamentar e não cumpria expediente na Câmara dos Deputados. Walderice figurava desde 2003 como assessora e tinha vencimento bruto de R$ 1,416,33. Para complementar a renda, vendia açaí em uma loja localizada na vila histórica de Mambucaba, em Angra dos Reis.
Em sua defesa, Bolsonaro alega que a funcionária o representava na região, e que ela foi abordada pela reportagem da Folha quando estava em período de férias. O argumento do candidato é que assessora prestava serviços políticos e por isso não precisava cumprir horários específicos nem estar presencialmente no seu gabinete.
A representação de um deputado é um trabalho legítimo, mas que, mesmo sendo fundamentalmente político, exige comprovação. Em geral, assessores regionais mantêm contato com prefeitos, vereadores, secretários municipais, lideranças empresariais e sociais, além de eleitores em geral. Paralelamente a isso, participam de eventos, audiências públicas, reuniões, dentre outras atividades às quais o parlamentar não pode se fazer presente em virtude de sua agenda.
Ocorre que, no caso Walderice, não parecem estar presentes as características desse tipo de trabalho. Muito pelo contrário: o que fica evidenciado é que ela atuava como caseira do deputado. Bolsonaro, por sua vez, afirma que ela recebia pessoas no local. Quem? Ainda não foram apresentados os indivíduos que se reuniram com ela. Algum vereador? Algum líder de bairro? Algum representante de entidade? Em quais situações Bolsonaro foi de fato representado por essa assessora? A mera afirmativa de que isso era feito não basta. É de dinheiro público que está se falando. E não importa o montante.
Uma vez presidente, Bolsonaro terá em mãos o poder para nomear milhares de funcionários. O episódio envolvendo a vendedora de açaí não é uma boa referência dos critérios usados por ele para escolher colaboradores. E não é o caso de se justificar a situação apelando para a condição financeira da mulher. Se de fato Walderice passava necessidades, poderia muito bem ter sido contratada como funcionária particular, sendo paga com dinheiro do próprio Bolsonaro.
Ainda não há qualquer denúncia ou investigação formal sendo feita a partir da reportagem da Folha de São Paulo. Mesmo assim, é possível dizer que a situação de Walderice flertava com a ilegalidade. Para muitos, o caso pode parecer ínfimo, ainda mais quando comparado com acusações de desvios de recursos públicos que atingem adversários de Bolsonaro. Mesmo assim, não se trata de analisar a proporção da coisa, mas seu significado na conjuntura.
Bolsonaro é visto como uma esperança de renovação. Ele mesmo se coloca como protagonista dessa mudança. No debate da Band, afirmou que “o único que pode romper essa barreira, o establishment, a máquina, o sistema é Jair Bolsonaro”. Diante disso, é claro que ele será mais cobrado que os outros, mesmo que por razões relativamente menores.
Empregar uma funcionária que não prestava o serviço para o qual foi nomeada é prática da velha política. Mesmo que todos os parlamentares façam isso, não significa que deve ser feito. Se você não impede as pequenas imoralidades que podem ocorrer dentro de seu gabinete, por que alguém deve acreditar que você vai acabar com as grandes imoralidades que acometem o país?
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